O Dr. Cândido Cruz

autor do primeiro Código de Deontologia Médica

 por António Matos Reis

 

     No já remoto ano de 1894 chegava a Ponte de Lima um jovem médico com a alma cheia de ideais e uma grande esperança no futuro: o Dr. Cândido da Cruz – de nome completo, José Cândido Pinto da Cruz e Costa, nascido no Porto, em 21 de Janeiro de 1863. As boas classificações que obtivera na Escola Médica e Cirúrgica podiam ter-lhe proporcionado outros voos mas a alma grande que o animava permitiu que os seus dons florescessem, mesmo na pacatez desta pequena terra encantada e sonhadora nas margens do sereno rio Lima, e que ele se tornasse uma figura conhecida e respeitada no seu meio profissional, em todo o país.

    Vinha preencher um novo lugar de médico municipal – médico de partido municipal, como então se designava – criado pela Câmara Municipal de Ponte de Lima.

   Ramalho Ortigão e D. António da Costa podem ajudar-nos a entender o deslumbramento com que pela primeira vez colocou os seus olhos nesta amada terra.

   Sobejamente conhecido o texto d’As Farpas[1], contentemo-nos com as impressões do autor de O Minho, que dos males causados pela já então buliçosa vida de Lisboa, por receita médica, se veio recompor por estas terras. Enquanto Ramalho Ortigão se fica genericamente pela beleza da paisagem envolvente, D. António da Costa conduz-nos ao interior da poética vila:

   “Corta-se a vila pela praça, e ao desembocar na extensa alameda, que borda o rio, sente-se de repente o sobressalto que produzem as coisa grandiosas.

   As margens do Lima!

  Do rio que os antigos consideravam (segundo se diz) o esquecimento de todas as delícias do mundo e de todas as impressões da alma.

   É aqui o ponto de vista arrebatador da afamada vila. 

  Defronte do hotel, e paralelamente a ele, em extensão imensa, uma alameda; duas correntezas de choupos, cujas copas curvadas umas para as outras formam uma perfeita abóbada de verdura até à ponte, seguindo daí até à ermida de S. João. A ponte monumental enche de majestade aquele espaço todo. O Lima, em grande largura, matiza o azul das suas águas com ilhotas de oiro formadas pela areia. Para além dele, a margem oposta dá-nos uma cordilheira de montes recortados, no cimo de um desses montes como um ponto de neve a capelinha de Santo Ovídio, e em baixo, na ondeada planície, arvoredos, prados, quintas, em caprichosa variedade”[2].

   O Dr. Cândido da Cruz instalar-se-ia no centro da povoação, no Arrabalde, no início da Rua de Vasco da Gama, logo a seguir ao Largo de S. João.

   Não havia então muitos médicos a exercer a sua actividade nesta vila. Uma década depois, como informa o Almanaque de Ponte de Lima de 1907, numa data em que o Dr. Cândido da Cruz exercia as funções de Subdelegado de Saúde interino, o concelho contava com o seguinte escol de facultativos: Dr. Amândio Vieira Lisboa, Dr. Manuel José de Oliveira, Dr. Manuel da Costa Almeida Ferraz, todos eles médicos municipais, o último em Freixo, o Dr. Manuel Joaquim Gonçalves, e ainda o Dr. Joaquim Gerardo Vieira Lisboa, médico municipal aposentado. Sobre as qualidades profissionais e humanas de alguns deles pode ler-se com agrado o artigo publicado pelo Dr. Francisco de Magalhães no Elucidário Regionalista de Ponte de Lima[3], também editado em separata.

   Através do Almanaque de Ponte de Lima verificamos que o principal lugar onde o Dr. Cândido da cruz exercia a sua actividade era a Misericórdia: o primeiro desses testemunhos é de 1907 e o último é do ano de 1923, mas estes anos não balizam esta actividade. Aí o iremos encontrar, por altura da homenagem que lhe foi prestada no último ano da sua vida, em 1937.

   O Dr. Cândido da Cruz não limitou a sua vida ao consultório e às visitas aos doentes através do concelho. Intelectual e pedagogo de alta craveira, desempenhou as funções de professor nos estabelecimentos de ensino secundário que no seu tempo aqui funcionaram: a Escola Municipal Secundária de Ponte de Lima, que foi instituída por deliberação camarária de 28 de Maio de 1904 e sancionada por decreto de 14 de Julho, e funcionou desde esse ano até ao de 1911, sendo designada como Liceu Municipal nos últimos anos; a Escola de Ensino Primária Complementar e Colégio “Cardeal Saraiva”, de fundação particular, reconhecida pela Câmara em 5 de Outubro de 1907, que chegaria aos terceiro quartel do século XX com a designação de Externato Cardeal Saraiva; a Escola Primária Superior de Ponte de Lima, criada por decreto de 28 de Julho de 1919, que iniciou as aulas em 28 de Outubro do mesmo ano, aparecendo designada em 1923, com Escola Primária Superior “Doutor António Feijó”[4], e foi extinta, como todas as suas congéneres por um decreto de 15 de Junho de 1926.

   Politicamente manteve-se sempre numa linha de grande dignidade e coerência, tendo aderido à ideologia republicana, desde os seus tempos de estudante na Escola Médica do Porto. Nos Almanaques de Ponte de Lima de 1907 a 1910 aparece sempre como membro efectivo da Comissão Republicana. Declinou, porém, o convite que lhe foi dirigido por António José de Almeida para ocupar uma das cadeiras de senador da República. No entanto, a sua disposição de servir da melhor maneira os interesses do Distrito, numa época muito conturbada, levou-o a aceitar, durante um governo presidido por António Granjo, a nomeação para o cargo de Governador Civil, que exerceu num curto período de tempo (de 7 de Agosto a 16 de Novembro de 1920[5]). Ao noticiar a sua nomeação, a Aurora do Lima classificava-o como “um cavalheiro distintíssimo, quer pelo seu honesto carácter, quer pela sua inteligência e vasta ilustração” e acrescentava  que “sempre na política conservou uma linha de inconfundível nobreza e de austeridade de princípios”[6].

   Nas horas livres dedicava-se à leitura e à escrita. Conhecia bem a obra literária de António Feijó, a que dedicou um artigo exemplar publicado no Almanaque de Ponte de Lima, em 1907[7]. Admirava a alma e a linguagem dos discursos parlamentares do grande tribuno que foi António Cândido, tendo-lhe consagrado um afectuoso artigo, publicado no mesmo almanaque após a sua morte[8]. Nenhuma obra que dissesse respeito à história da sua terra de adopção lhe podia passar ao lado e assim, leitor atento, respigava em obras como a História da Administração Pública em Portugal, de Henrique da Gama Barros, na Crónica de Fernão Lopes ou no Processo dos Távoras todas as passagens que pudessem conter alusões a Ponte de Lima[9]. O Dr. Cândido da Cruz foi sócio efectivo do Instituto Histórico do Minho, a única associação cultural na altura existente no distrito de Viana do Castelo. Colaborou na imprensa local, especialmente nos semanários A Voz do Lima (cujo primeiro número saíra em 28 de Julho de 1886) e O Comércio do Lima (que se publicou desde 23 de Agosto de 1906 até 7 de Dezembro de 1919, terminando com o n.º 629), nos quais, segundo Júlio de Lemos, deixou “artigos científicos e pedagógicos de raro valor”.

   A sua produção literária mais relevante situa-se, naturalmente no âmbito da medicina, da higiene e da deontologia médica.

   Ainda jovem, participou no arranque da campanha contra o grande flagelo que era então a tuberculose, com uma conferência proferida no Teatro Sá de Miranda, de Viana do Castelo, em Outubro de 1901, sobre o tema Higiene dos predispostos à tuberculose. No ano seguinte colaborava activamente no 2.º Congresso da Liga Nacional contra a tuberculose, realizado em Viana do Castelo, de 3 a 6 de Setembro, no edifício do antigo Convento de Sant’Ana, onde então corriam as obras de transformação e adaptação a Hospital da Caridade. O Prof. Doutor Miguel Bombarda, o grande impulsionador da campanha e fundador da Liga Nacional contra a tuberculose, diria que “O congresso de Viana do Castelo foi um sucesso extraordinário no país, não só pela cidade em que se celebrou e que não figura entre as mais populosas de Portugal, como pela elevação dos assuntos que se trataram e das discussões a que deram origem, como finalmente pelo conjunto da sua tarefa, à qual nem o Congresso de Berlim, dois meses depois celebrado, soube adiantar-se”. Sublinhe-se que deste congresso resultariam a criação do Sanatório Marítimo do Norte, na Gelfa, e do Dispensário Anti-tuberculoso, em Viana, assim como de um Hospital para tuberculosos, nos arredores da cidade, em S. João de Arga.

   No congresso de Viana o Dr. Cândido da Cruz apresentou O Manual de Higiene para uso das escolas primárias, de cuja redacção fora encarregado pelos organizadores. No terceiro e quarto congressos sobre o mesmo assunto, realizados em Coimbra, em 1904, e no Porto, em 1907, o Dr. Cândido da Cruz fez comunicações sobre os temas Os regulamentos sanitários e o segredo profissional em matéria de tuberculose e  A mulher na luta contra a tuberculose.

   Na memória que sobre o congresso de Viana escreveu, trinta anos depois[10], o Dr. Tiago de Almeida referia-se nos termos mais elogiosos ao Dr. Cândido da Cruz: “É um dos mais ilustrados membros da classe médica portuguesa, honrando-a pelo seu saber, e pela devotada atenção com que tem estudado as questões que se relacionam com a deontologia e a higiene. Sem sombra de dúvida é o nosso primeiro deontologista, estatuindo os mais salutares princípios de moral profissional, que procura vulgarizar, e sabe exemplificar com a aprumada feição pessoal da sua clínica”. E entre as suas publicações sobre estas matérias citava então:

   Desinfecção pública e privada na província, em Medicina Moderna, 1895 e 1896;

   Doenças escolares, em Medicina Moderna, 1897 e 1898;

   Os edifícios para as escolas primárias, em Medicina Moderna, 1898;

   A declaração obrigatória das doenças infecciosas, e em particular a tuberculose, em Medicina Moderna, 1906;

   Higiene doméstica. Alimentação da infância, em O Comércio do Lima, 1906 (vários artigos);

   Catecismo de puericultura. Publicação da Liga Portuguesa de Profilaxia Social;

   Higiene moral. Conferência proferida no Porto, em 1930. Publicação da Liga Portuguesa de Profilaxia Social.

Saiu de Ponte de Lima mais algumas vezes para participar em reuniões científicas. De todas elas se tornou mais emblemática foi o I Congresso de Deontologia Médica, realizado no Porto, em 1912, no qual apontou alguns princípios a seguir no relacionamento com os doentes, dando origem ao primeiro Código de Deontologia Médica, de 1914.

   Em 15 de Maio de 1937, na viagem de conclusão do ano lectivo, os finalistas do curso da Faculdade de Medicina do Porto, sob a direcção do seu professor de História da Medicina, Doutor Luís de Pina, deslocaram-se a Ponte de Lima para homenagear o Dr. Cândido da Cruz. Era a segunda vez que tal acontecia, mas desta associaram-se à homenagem, que teve lugar no Hospital da Santa Casa da Misericórdia, outras forças vivas de Ponte de Lima. Não podiam ser  mais desvanecedoras as palavras que o Prof. Luís de Pina dedicou ao Dr. Cândido da Cruz e que gostaríamos de reproduzir na íntegra. Na impossibilidade de o fazer, citamos aquelas com que logo no início se explica o sentido desta homenagem:

   “Vossa Ex.cia encarna na sua vida clínica, familiar e social, aqueles médicos que os nossos maiores, desde Amato Lusitano a Tiago de Almeida e Sousa Martins, tanto e tão sentidamente queriam que fossem todos os médicos: – sábios, bons e justos!”.

  Logo a seguir referia-se àquele que foi um dos mais importantes contributos dados à medicina portuguesa pelo médico limiano, apresentando esta visita como “a expressão franca e leal de muita admiração pelo autor do incomparável Código da Deontologia Médica portuguesa, sobre que há-de assentar, tenho fé, o Estatuto da nossa Ordem”. E ainda: “A soberania moral de Vossa Ex.cia ditou honrados preceitos, por sua vez, com incomparável modéstia e inquebrantável autoridade, a todos os médicos de Portugal! Essa, sobretudo, a melhor e mais reluzente coroa da sua vida de médico, Senhor Doutor Cândido da Cruz”

   Esta coroa, porém, não a cingiu por muito mais tempo, nem sequer no momento de glória que poderia ter sido a iminente fundação da Ordem dos Médicos. Confrontado pela doença, desta vez na primeira pessoa, deixou a sua terra de adopção e regressou, em busca de tratamento, à invicta cidade de onde há mais de quarenta anos partira em direcção às margens do Lima. Inelutavelmente chegaria ao termo da sua vida, no dia 12 de Agosto de 1937. Os jornais da época registaram a eloquente manifestação de pesar que foi o seu impressionante cortejo fúnebre, em que participou uma extraordinária multidão de pessoas, que incluía desde os médicos, o professorado, e pessoas das mais diversas categorias, incluindo o povo humilde, vindas de todos os lados. Os seus restos mortais repousam no Cemitério da Lapa, onde também se encontram os de Camilo.

   Em Ponte de Lima continuou a ser recordado com muita saudade e é com a memória que dele ficou na vila limiana que encerramos esta evocação.

   O Dr. António Ferreira, magistrado e poeta, dedicou-lhe um extenso artigo, que ocupava toda a primeira página do semanário O Cardeal Saraiva, do qual respigamos algumas passagens:

   “Como chefe de família, não conhecemos quem melhor soubesse dignificar o lar que fundou e alicerçou nas mais sólidas bases da vida moral. Ele foi como um modelo entre os homens do  seu tempo. Pertenceu à restrita categoria dos eleitos que atingem as grandes normas duma educação superior”. Como médico, “Tinha, como poucos, o elevado conceito da sua acção profissional que nunca conduziu para o lado do utilitarismo mercantil, porque sempre a exerceu desinteressadamente no sentido de minorar os males dos que sofrem com os recursos do seu saber”[11].

   Num artigo de fino recorte literário, o Dr. Teófilo Carneiro, advogado, professor, poeta e homem público, traçava deste modo, em breve síntese, o perfil do Dr. Cândido da Cruz:

   “Sob o ponto de vista moral – um carácter íntegro; sob o ponto de vista político – um vivo exemplo de dignidade cívica e de impressionante coerência; sob o ponto de vista intelectual – uma vigorosa e admirável afirmação de talento; sob o ponto de vista profissional – uma competência científica, largamente comprovada em revistas da especialidade, conferências e congressos; sob o ponto de vista afectivo – uma alma aberta aos mais rasgados sentimentos de solidariedade humana”[12].

   Augusto de Castro e Sousa, mestre tipógrafo e educador, homem simples mas culto, amante da sua terra como poucos e autor de várias publicações, que se lêem com agrado, num texto escrito em 1960 e incluído no seu livro Nas horas livres da minha profissão[13], registou, com alguma emoção, a imagem que lhe ficara do exemplaríssimo médico:

   “Na sua missão altruísta, nunca recusou auxílio a ninguém, nem se negara a qualquer hora do dia ou da noite e sabendo, de antemão, que, em muitos casos, não iria receber honorários pelo seu trabalho, fazia o sacrifício sem custo, ele que eu conhecera nos meus recuados tempos da mocidade, já de cabelos brancos e sofrendo bastante fisicamente.

   Caminhando a pé, pelos caminhos tortuosos da aldeia, indiferente às intempéries, de dia ou de noite, o Dr. Cândido da Cruz salvou muita vida e cicatrizou muita dor moral”.

   E, para concluir:

   “Por muito que se conte da grandiosidade desta vida dedicada a outras vidas, jamais se dirá todo o bem que espalhou, as dores que sofreu por ver sofrer, as lágrimas suavizadas, os remédios que pagou do seu magro bolso, os conselhos prudentes, conciliatórios e saudáveis que sempre deu, e tantas outras facetas do seu curioso espírito que o tornaram querido e abençoado pelas gerações.

   O nome do Dr. Cândido da Cruz viverá indelevelmente nos corações limianos, pois era homem sensível e de extrema bondade!”[14].

António Matos Reis

 

Publicado em Estudos Regionais, n.º 23, Viana do Castelo, 2003, p. 295-302.



[1] Ramalho Ortigão, As Farpas, 1887, vol. I,  p. 5.

[2] D. António da Costa, O Minho, Porto, 1900, p. 128-129.

[3] Francisco de Magalhães, Médicos de Ponte de Lima, em Elucidário Regionalista de Ponte de Lima, Ponte de Lima, 1950, p. 181-200.

[4] Almanaque de Ponte de Lima, 1923, p. 30.

[5] Datas que correspondem à tomada de posse e à exoneração. A data da nomeação é a de 31 de Junho de 1920.

[6] A Aurora do Lima, 65.º ano, n.º 62, de 6 de Agosto de 1920, 1.ª página.

[7] Cândido da Cruz, António Feijó, em Almanaque Ilustrado de “O Comércio do Lima”, 1907, p. 175-177.

[8] Cândido da Cruz, Um aspecto da psicologia de António Cândido, em Almanaque de Ponte de Lima Lima”, 1923, p. 175-180.

[9] Cândido da Cruz, Fragmentos de História Limarense, em Almanaque de Ponte de Lima”, 1933, p. 29-33.

[10] Tiago de Almeida, O Congresso contra a tuberculose em Viana do Castelo, em Arquivo de Viana do Castelo, vol. I, n.º 1 (Janeiro de 1934), p. 4-12.

[11] António Ferreira, Dr. Cândido da Cruz, em Cardeal Saraiva, ano XXVII, n.º 1104, de 26 de Agosto de 1937.

[12] Não conseguimos localizar este artigo, citado no Elucidário Regionalista de Ponte de Lima, Ponte de Lima, 1950, p. 140

[13] Augusto de Castro e Sousa, Nas horas livres da minha profissão, Ponte de Lima, 1960, p. 221-229.

[14] Conferência proferida no colóquio de homenagem ao Dr. Cândido da Cruz, promovido pela Comissão de Ética do Hospital de Ponte de Lima, em 3 de Dezembro de 2002.