O Dr. Cândido Cruz

autor do primeiro Código de Deontologia Médica

 por António Matos Reis

 

     No já remoto ano de 1894 chegava a Ponte de Lima um jovem médico com a alma cheia de ideais e uma grande esperança no futuro: o Dr. Cândido da Cruz – de nome completo, José Cândido Pinto da Cruz e Costa, nascido no Porto, em 21 de Janeiro de 1863. As boas classificações que obtivera na Escola Médica e Cirúrgica podiam ter-lhe proporcionado outros voos mas a alma grande que o animava permitiu que os seus dons florescessem, mesmo na pacatez desta pequena terra encantada e sonhadora nas margens do sereno rio Lima, e que ele se tornasse uma figura conhecida e respeitada no seu meio profissional, em todo o país.

    Vinha preencher um novo lugar de médico municipal – médico de partido municipal, como então se designava – criado pela Câmara Municipal de Ponte de Lima.

   Ramalho Ortigão e D. António da Costa podem ajudar-nos a entender o deslumbramento com que pela primeira vez colocou os seus olhos nesta amada terra.

   Sobejamente conhecido o texto d’As Farpas[1], contentemo-nos com as impressões do autor de O Minho, que dos males causados pela já então buliçosa vida de Lisboa, por receita médica, se veio recompor por estas terras. Enquanto Ramalho Ortigão se fica genericamente pela beleza da paisagem envolvente, D. António da Costa conduz-nos ao interior da poética vila:

   “Corta-se a vila pela praça, e ao desembocar na extensa alameda, que borda o rio, sente-se de repente o sobressalto que produzem as coisa grandiosas.

   As margens do Lima!

  Do rio que os antigos consideravam (segundo se diz) o esquecimento de todas as delícias do mundo e de todas as impressões da alma.

   É aqui o ponto de vista arrebatador da afamada vila. 

  Defronte do hotel, e paralelamente a ele, em extensão imensa, uma alameda; duas correntezas de choupos, cujas copas curvadas umas para as outras formam uma perfeita abóbada de verdura até à ponte, seguindo daí até à ermida de S. João. A ponte monumental enche de majestade aquele espaço todo. O Lima, em grande largura, matiza o azul das suas águas com ilhotas de oiro formadas pela areia. Para além dele, a margem oposta dá-nos uma cordilheira de montes recortados, no cimo de um desses montes como um ponto de neve a capelinha de Santo Ovídio, e em baixo, na ondeada planície, arvoredos, prados, quintas, em caprichosa variedade”[2].

   O Dr. Cândido da Cruz instalar-se-ia no centro da povoação, no Arrabalde, no início da Rua de Vasco da Gama, logo a seguir ao Largo de S. João.

   Não havia então muitos médicos a exercer a sua actividade nesta vila. Uma década depois, como informa o Almanaque de Ponte de Lima de 1907, numa data em que o Dr. Cândido da Cruz exercia as funções de Subdelegado de Saúde interino, o concelho contava com o seguinte escol de facultativos: Dr. Amândio Vieira Lisboa, Dr. Manuel José de Oliveira, Dr. Manuel da Costa Almeida Ferraz, todos eles médicos municipais, o último em Freixo, o Dr. Manuel Joaquim Gonçalves, e ainda o Dr. Joaquim Gerardo Vieira Lisboa, médico municipal aposentado. Sobre as qualidades profissionais e humanas de alguns deles pode ler-se com agrado o artigo publicado pelo Dr. Francisco de Magalhães no Elucidário Regionalista de Ponte de Lima[3], também editado em separata.

   Através do Almanaque de Ponte de Lima verificamos que o principal lugar onde o Dr. Cândido da cruz exercia a sua actividade era a Misericórdia: o primeiro desses testemunhos é de 1907 e o último é do ano de 1923, mas estes anos não balizam esta actividade. Aí o iremos encontrar, por altura da homenagem que lhe foi prestada no último ano da sua vida, em 1937.

   O Dr. Cândido da Cruz não limitou a sua vida ao consultório e às visitas aos doentes através do concelho. Intelectual e pedagogo de alta craveira, desempenhou as funções de professor nos estabelecimentos de ensino secundário que no seu tempo aqui funcionaram: a Escola Municipal Secundária de Ponte de Lima, que foi instituída por deliberação camarária de 28 de Maio de 1904 e sancionada por decreto de 14 de Julho, e funcionou desde esse ano até ao de 1911, sendo designada como Liceu Municipal nos últimos anos; a Escola de Ensino Primária Complementar e Colégio “Cardeal Saraiva”, de fundação particular, reconhecida pela Câmara em 5 de Outubro de 1907, que chegaria aos terceiro quartel do século XX com a designação de Externato Cardeal Saraiva; a Escola Primária Superior de Ponte de Lima, criada por decreto de 28 de Julho de 1919, que iniciou as aulas em 28 de Outubro do mesmo ano, aparecendo designada em 1923, com Escola Primária Superior “Doutor António Feijó”[4], e foi extinta, como todas as suas congéneres por um decreto de 15 de Junho de 1926.

   Politicamente manteve-se sempre numa linha de grande dignidade e coerência, tendo aderido à ideologia republicana, desde os seus tempos de estudante na Escola Médica do Porto. Nos Almanaques de Ponte de Lima de 1907 a 1910 aparece sempre como membro efectivo da Comissão Republicana. Declinou, porém, o convite que lhe foi dirigido por António José de Almeida para ocupar uma das cadeiras de senador da República. No entanto, a sua disposição de servir da melhor maneira os interesses do Distrito, numa época muito conturbada, levou-o a aceitar, durante um governo presidido por António Granjo, a nomeação para o cargo de Governador Civil, que exerceu num curto período de tempo (de 7 de Agosto a 16 de Novembro de 1920[5]). Ao noticiar a sua nomeação, a Aurora do Lima classificava-o como “um cavalheiro distintíssimo, quer pelo seu honesto carácter, quer pela sua inteligência e vasta ilustração” e acrescentava  que “sempre na política conservou uma linha de inconfundível nobreza e de austeridade de princípios”[6].

   Nas horas livres dedicava-se à leitura e à escrita. Conhecia bem a obra literária de António Feijó, a que dedicou um artigo exemplar publicado no Almanaque de Ponte de Lima, em 1907[7]. Admirava a alma e a linguagem dos discursos parlamentares do grande tribuno que foi António Cândido, tendo-lhe consagrado um afectuoso artigo, publicado no mesmo almanaque após a sua morte[8]. Nenhuma obra que dissesse respeito à história da sua terra de adopção lhe podia passar ao lado e assim, leitor atento, respigava em obras como a História da Administração Pública em Portugal, de Henrique da Gama Barros, na Crónica de Fernão Lopes ou no Processo dos Távoras todas as passagens que pudessem conter alusões a Ponte de Lima[9]. O Dr. Cândido da Cruz foi sócio efectivo do Instituto Histórico do Minho, a única associação cultural na altura existente no distrito de Viana do Castelo. Colaborou na imprensa local, especialmente nos semanários A Voz do Lima (cujo primeiro número saíra em 28 de Julho de 1886) e O Comércio do Lima (que se publicou desde 23 de Agosto de 1906 até 7 de Dezembro de 1919, terminando com o n.º 629), nos quais, segundo Júlio de Lemos, deixou “artigos científicos e pedagógicos de raro valor”.

   A sua produção literária mais relevante situa-se, naturalmente no âmbito da medicina, da higiene e da deontologia médica.

   Ainda jovem, participou no arranque da campanha contra o grande flagelo que era então a tuberculose, com uma conferência proferida no Teatro Sá de Miranda, de Viana do Castelo, em Outubro de 1901, sobre o tema Higiene dos predispostos à tuberculose. No ano seguinte colaborava activamente no 2.º Congresso da Liga Nacional contra a tuberculose, realizado em Viana do Castelo, de 3 a 6 de Setembro, no edifício do antigo Convento de Sant’Ana, onde então corriam as obras de transformação e adaptação a Hospital da Caridade. O Prof. Doutor Miguel Bombarda, o grande impulsionador da campanha e fundador da Liga Nacional contra a tuberculose, diria que “O congresso de Viana do Castelo foi um sucesso extraordinário no país, não só pela cidade em que se celebrou e que não figura entre as mais populosas de Portugal, como pela elevação dos assuntos que se trataram e das discussões a que deram origem, como finalmente pelo conjunto da sua tarefa, à qual nem o Congresso de Berlim, dois meses depois celebrado, soube adiantar-se”. Sublinhe-se que deste congresso resultariam a criação do Sanatório Marítimo do Norte, na Gelfa, e do Dispensário Anti-tuberculoso, em Viana, assim como de um Hospital para tuberculosos, nos arredores da cidade, em S. João de Arga.

   No congresso de Viana o Dr. Cândido da Cruz apresentou O Manual de Higiene para uso das escolas primárias, de cuja redacção fora encarregado pelos organizadores. No terceiro e quarto congressos sobre o mesmo assunto, realizados em Coimbra, em 1904, e no Porto, em 1907, o Dr. Cândido da Cruz fez comunicações sobre os temas Os regulamentos sanitários e o segredo profissional em matéria de tuberculose e  A mulher na luta contra a tuberculose.

   Na memória que sobre o congresso de Viana escreveu, trinta anos depois[10], o Dr. Tiago de Almeida referia-se nos termos mais elogiosos ao Dr. Cândido da Cruz: “É um dos mais ilustrados membros da classe médica portuguesa, honrando-a pelo seu saber, e pela devotada atenção com que tem estudado as questões que se relacionam com a deontologia e a higiene. Sem sombra de dúvida é o nosso primeiro deontologista, estatuindo os mais salutares princípios de moral profissional, que procura vulgarizar, e sabe exemplificar com a aprumada feição pessoal da sua clínica”. E entre as suas publicações sobre estas matérias citava então:

   Desinfecção pública e privada na província, em Medicina Moderna, 1895 e 1896;

   Doenças escolares, em Medicina Moderna, 1897 e 1898;

   Os edifícios para as escolas primárias, em Medicina Moderna, 1898;

   A declaração obrigatória das doenças infecciosas, e em particular a tuberculose, em Medicina Moderna, 1906;

   Higiene doméstica. Alimentação da infância, em O Comércio do Lima, 1906 (vários artigos);

   Catecismo de puericultura. Publicação da Liga Portuguesa de Profilaxia Social;

   Higiene moral. Conferência proferida no Porto, em 1930. Publicação da Liga Portuguesa de Profilaxia Social.

Saiu de Ponte de Lima mais algumas vezes para participar em reuniões científicas. De todas elas se tornou mais emblemática foi o I Congresso de Deontologia Médica, realizado no Porto, em 1912, no qual apontou alguns princípios a seguir no relacionamento com os doentes, dando origem ao primeiro Código de Deontologia Médica, de 1914.

   Em 15 de Maio de 1937, na viagem de conclusão do ano lectivo, os finalistas do curso da Faculdade de Medicina do Porto, sob a direcção do seu professor de História da Medicina, Doutor Luís de Pina, deslocaram-se a Ponte de Lima para homenagear o Dr. Cândido da Cruz. Era a segunda vez que tal acontecia, mas desta associaram-se à homenagem, que teve lugar no Hospital da Santa Casa da Misericórdia, outras forças vivas de Ponte de Lima. Não podiam ser  mais desvanecedoras as palavras que o Prof. Luís de Pina dedicou ao Dr. Cândido da Cruz e que gostaríamos de reproduzir na íntegra. Na impossibilidade de o fazer, citamos aquelas com que logo no início se explica o sentido desta homenagem:

   “Vossa Ex.cia encarna na sua vida clínica, familiar e social, aqueles médicos que os nossos maiores, desde Amato Lusitano a Tiago de Almeida e Sousa Martins, tanto e tão sentidamente queriam que fossem todos os médicos: – sábios, bons e justos!”.

  Logo a seguir referia-se àquele que foi um dos mais importantes contributos dados à medicina portuguesa pelo médico limiano, apresentando esta visita como “a expressão franca e leal de muita admiração pelo autor do incomparável Código da Deontologia Médica portuguesa, sobre que há-de assentar, tenho fé, o Estatuto da nossa Ordem”. E ainda: “A soberania moral de Vossa Ex.cia ditou honrados preceitos, por sua vez, com incomparável modéstia e inquebrantável autoridade, a todos os médicos de Portugal! Essa, sobretudo, a melhor e mais reluzente coroa da sua vida de médico, Senhor Doutor Cândido da Cruz”

   Esta coroa, porém, não a cingiu por muito mais tempo, nem sequer no momento de glória que poderia ter sido a iminente fundação da Ordem dos Médicos. Confrontado pela doença, desta vez na primeira pessoa, deixou a sua terra de adopção e regressou, em busca de tratamento, à invicta cidade de onde há mais de quarenta anos partira em direcção às margens do Lima. Inelutavelmente chegaria ao termo da sua vida, no dia 12 de Agosto de 1937. Os jornais da época registaram a eloquente manifestação de pesar que foi o seu impressionante cortejo fúnebre, em que participou uma extraordinária multidão de pessoas, que incluía desde os médicos, o professorado, e pessoas das mais diversas categorias, incluindo o povo humilde, vindas de todos os lados. Os seus restos mortais repousam no Cemitério da Lapa, onde também se encontram os de Camilo.

   Em Ponte de Lima continuou a ser recordado com muita saudade e é com a memória que dele ficou na vila limiana que encerramos esta evocação.

   O Dr. António Ferreira, magistrado e poeta, dedicou-lhe um extenso artigo, que ocupava toda a primeira página do semanário O Cardeal Saraiva, do qual respigamos algumas passagens:

   “Como chefe de família, não conhecemos quem melhor soubesse dignificar o lar que fundou e alicerçou nas mais sólidas bases da vida moral. Ele foi como um modelo entre os homens do  seu tempo. Pertenceu à restrita categoria dos eleitos que atingem as grandes normas duma educação superior”. Como médico, “Tinha, como poucos, o elevado conceito da sua acção profissional que nunca conduziu para o lado do utilitarismo mercantil, porque sempre a exerceu desinteressadamente no sentido de minorar os males dos que sofrem com os recursos do seu saber”[11].

   Num artigo de fino recorte literário, o Dr. Teófilo Carneiro, advogado, professor, poeta e homem público, traçava deste modo, em breve síntese, o perfil do Dr. Cândido da Cruz:

   “Sob o ponto de vista moral – um carácter íntegro; sob o ponto de vista político – um vivo exemplo de dignidade cívica e de impressionante coerência; sob o ponto de vista intelectual – uma vigorosa e admirável afirmação de talento; sob o ponto de vista profissional – uma competência científica, largamente comprovada em revistas da especialidade, conferências e congressos; sob o ponto de vista afectivo – uma alma aberta aos mais rasgados sentimentos de solidariedade humana”[12].

   Augusto de Castro e Sousa, mestre tipógrafo e educador, homem simples mas culto, amante da sua terra como poucos e autor de várias publicações, que se lêem com agrado, num texto escrito em 1960 e incluído no seu livro Nas horas livres da minha profissão[13], registou, com alguma emoção, a imagem que lhe ficara do exemplaríssimo médico:

   “Na sua missão altruísta, nunca recusou auxílio a ninguém, nem se negara a qualquer hora do dia ou da noite e sabendo, de antemão, que, em muitos casos, não iria receber honorários pelo seu trabalho, fazia o sacrifício sem custo, ele que eu conhecera nos meus recuados tempos da mocidade, já de cabelos brancos e sofrendo bastante fisicamente.

   Caminhando a pé, pelos caminhos tortuosos da aldeia, indiferente às intempéries, de dia ou de noite, o Dr. Cândido da Cruz salvou muita vida e cicatrizou muita dor moral”.

   E, para concluir:

   “Por muito que se conte da grandiosidade desta vida dedicada a outras vidas, jamais se dirá todo o bem que espalhou, as dores que sofreu por ver sofrer, as lágrimas suavizadas, os remédios que pagou do seu magro bolso, os conselhos prudentes, conciliatórios e saudáveis que sempre deu, e tantas outras facetas do seu curioso espírito que o tornaram querido e abençoado pelas gerações.

   O nome do Dr. Cândido da Cruz viverá indelevelmente nos corações limianos, pois era homem sensível e de extrema bondade!”[14].

António Matos Reis

 

Publicado em Estudos Regionais, n.º 23, Viana do Castelo, 2003, p. 295-302.



[1] Ramalho Ortigão, As Farpas, 1887, vol. I,  p. 5.

[2] D. António da Costa, O Minho, Porto, 1900, p. 128-129.

[3] Francisco de Magalhães, Médicos de Ponte de Lima, em Elucidário Regionalista de Ponte de Lima, Ponte de Lima, 1950, p. 181-200.

[4] Almanaque de Ponte de Lima, 1923, p. 30.

[5] Datas que correspondem à tomada de posse e à exoneração. A data da nomeação é a de 31 de Junho de 1920.

[6] A Aurora do Lima, 65.º ano, n.º 62, de 6 de Agosto de 1920, 1.ª página.

[7] Cândido da Cruz, António Feijó, em Almanaque Ilustrado de “O Comércio do Lima”, 1907, p. 175-177.

[8] Cândido da Cruz, Um aspecto da psicologia de António Cândido, em Almanaque de Ponte de Lima Lima”, 1923, p. 175-180.

[9] Cândido da Cruz, Fragmentos de História Limarense, em Almanaque de Ponte de Lima”, 1933, p. 29-33.

[10] Tiago de Almeida, O Congresso contra a tuberculose em Viana do Castelo, em Arquivo de Viana do Castelo, vol. I, n.º 1 (Janeiro de 1934), p. 4-12.

[11] António Ferreira, Dr. Cândido da Cruz, em Cardeal Saraiva, ano XXVII, n.º 1104, de 26 de Agosto de 1937.

[12] Não conseguimos localizar este artigo, citado no Elucidário Regionalista de Ponte de Lima, Ponte de Lima, 1950, p. 140

[13] Augusto de Castro e Sousa, Nas horas livres da minha profissão, Ponte de Lima, 1960, p. 221-229.

[14] Conferência proferida no colóquio de homenagem ao Dr. Cândido da Cruz, promovido pela Comissão de Ética do Hospital de Ponte de Lima, em 3 de Dezembro de 2002.

Francisco de Holanda – introdução ao estudo da sua obra


        I – PRIMEIROS ANOS

    Nos seus escritos, Francisco de Holanda dá-nos a conhecer o local e a data aproximada do próprio nascimento. No primeiro colóquio com Miguel Ângelo, Vittoria Colonna e Lattanzio Tolomei, instado, por uma artificiosa intervenção da Marquesa de Pescara, a dizer como vão as coisas da arte na sua terra, Francisco de Holanda assim inicia a resposta:
    Temos, senhora, em Portugal cidades boas e antigas, principalmente a minha pátria, Lisboa.
    O seu pai chamava-se António de Holanda. Pode este nome signi­ficar que nascesse nos Países Baixos ou que alguns dos seus antepassados mais próximos daí procedessem.
    Por meados da segunda década do séc. XVI ou pouco depois, já António de Holanda estava ao serviço da coroa portuguesa, tendo suce­dido no cargo de passavante ao pintor Francisco Henriques, falecido em 1519. Segundo refere o seu filho na carta a D. António, Prior do Crato, António de Holanda era já rei d’armas e escrivão da nobreza do reino, quando desenhou o brasão do infante D. Luís.
    Em 1530 fazia os desenhos para as iluminuras da Genealogia dos Reis de Portugal, coloridas por Simão Bening e actualmente no British Museum, de Londres).
    Desde 1533 até 1537, António de Holanda viveu em Évora, resi­dência privilegiada da Corte Portuguesa, onde fez trabalhos para o Con­vento de Tomar e outras obras.
    Em 1537, sucedendo a Pedro de Évora, foi oficialmente investido no cargo de iluminador das cartas de brasão, que desempenhou até 1542.
    Segundo o testemunho do seu próprio filho, sabe-se que António de Holanda executou os Livros de Horas (Breviários) de D. Manuel, actualmente no Museu Nacional de Arte Antiga, e de D. Leonor, agora na Colec­ção Pierpont Morgan, de Nova Iorque. Terá colaborado também na iluminura da Leitura Nova, devendo-se-lhe possivelmente o frontispício n.º 18 (1511) do Livro II dos Místicos
    Nas listas dos artistas com que termina o Da Pintura Antigua, Fran­cisco de Holanda coloca o pai no primeiro lugar entre os iluminadores do seu tempo:
    «A António d'Ollanda, meu pai, podemos dar a palma e juízo, por ser o primeiro que fez e achou em Portugal o fazer  suave de preto e branco muito melhor que em outra parte do mundo». Seguem-se-lhe, pela respectiva ordem, Júlio da Macedónia (Júlio Clóvio), M. Vicencio de Roma, Vante Attavanti e Simão Bening.
    Em 1553 ainda Francisco de Holanda na carta escrita a Miguel Ângelo saudava o grande artista em nome de seu pai: «Mio patre António Dolanda si racomanda ala S. V. conesso me insieme». Em 1571, no tratado Da Fábrica já dele se recorda com saudade: «meu pai António d'Olanda também que Deos tem».
    Outros irmãos teve Francisco de Holanda: Miguel de Holanda era em 1542 Tesoureiro da Fazenda de El-Rei em Goa; Miguel Homem é juiz de fora em Óbidos em 1551; Jerónimo de Holanda, moço de Câmara do Infante D. Duarte (irmão de D. João III); D. Maria, casada com Jerónimo de Azevedo, feitor e tesoureiro de Cochim em 1567.
    O único dos irmãos a que Francisco de Holanda se refere, no tratado Da Fábrica, é João Homem d'Olanda, que na altura (1571) desempenhava as funções de provedor de Santarém.
    De uma carta escrita por Francisco de Holanda a Dom António, Prior do Crato, para integrar no processo de legitimação deste Infante, em 6 de Maio de 1579, e actualmente no Arquivo da Casa do Duque de Alba, em Madrid, podemos inferir que António de Holanda, após a morte do Infante D. Luís (27 de Novembro de 1555), e antes da morte do rei D. João III (11 de janeiro de 1557), já se encontrava com a doença que o levaria deste mundo e que por essa mesma altura deve ter falecido, provavelmente em 1556.
    Ainda hoje ignoramos a data exacta do nascimento de Francisco de Holanda. No tratado De Quanto serve a Sciência do Desenho, dirigindo-se a D. Sebastião, refere «sendo eu da idade de XX anos me mandou El Rei vosso avô a ver Itália e a trazer-lhe muitos desegnos de cousas notáveis della». Holanda situa os seus Diálogos no Outono de 1538, ou seja nos dois domingos anteriores no próprio dia e no que se seguiu ao do casa­mento de Octávio Farnese com Margarida de Parma; no quarto desses  diálogos se declara como «sendo eu forasteiro, e havendo um afino só que stou nesta terra». Feitas as contas, podemos concluir que Francisco de Holanda nasceu, mais ou menos, pelo ano de 1517.
    Dos anos da sua infância sabemos, ainda por informação do próprio, que viveu em Lisboa em casa do Infante D. Fernando, filho do Rei D. Manuel, quando se refere a Braz Pereira Brandão, do Porto, filho de Fer­nando Brandão, a propósito da passagem em sua casa no regresso de Com­postela: «como quer nos ambos quasi criámos em casa d'aquelle Senhor», isto é, do Infante D. Fernando, nascido a 5 de Junho de 1507, casado em 1530 com D. Guiomar Coutinho, e falecido a 7 de Novembro de 1534, depois da morte dos seus dois filhos e poucas semanas antes da mulher (9 de Dezembro). Senhor de uma das mais importantes casas do país, que, no dizer de Barbosa Machado (Bib. Lusit, Vol. II, pág. 11), podia competir com a real, foi amigo das letras e especialmente dos estudos históricos e genealógicos, segundo a informação do humanista Damião de Góis que, para ele, organizou na Flandres uma grande livraria de obras escolhidas, impressas e manuscritas, entre as quais, referidas pelo mesmo autor, se contam as iluminuras encomendadas a Simão Bening (Benichius) .
    Após o morte do Infante D. Fernando, se não já antes, Francisco passou a frequentar a casa do infante D. Afonso, em Évora, do qual foi moço de Câmara. O infante D. Afonso acumulou vários cargos eclesiás­ticos: Administrador e Governador do Arcebispado de Lisboa (1517) e das dioceses de Évora (1524) e Viseu (1529), Abade Comendatário dos Mosteiros de Alcobaça e Prior do Convento de Santa Cruz de Coimbra, tendo sido elevado à dignidade de Cardeal, do título de Santa Luzia, e posteriormente de S. Brás (1524), e de S. João e S. Paulo (1536), antes de falecer em 1540, pouco antes do regresso do Holanda.
    Além de prelado exemplar, e reformador, foi um fervoroso humanista, que não desdenhava de se sentar nos bancos dos ouvintes, a escutar as lições do mestre André de Resende, dadas nas aulas que abriu nos Paços de Évora, por volta de 1533. Nesta «Escola Pública de Letras Humanas» ensinaram também os humanistas Aires Barbosa, Pedro Margalho e D. Francisco de Melo, futuro Bispo de Goa, que com Clenardo, João Petit e Vazeu, estrangeiros, Pedro Sanches, Jorge Coelho, António Pinheiro e Manuel da Costa, foi membro da Academia Eborense, fundada por Pedro Sanches, contribuindo para transformar Évora num grande centro cul­tural
    As relações com estes humanistas estão documentadas nas poesias que ao Holanda dedicaram Pedro Sanches e António Pinheiro, transcritas a seguir ao prefácio do tratado Da Pintura Antigua, e no poema De Vita Vicentii de André de Resende, onde o Holanda é chamado «Juvenis, admirabili ingenio, et Lusitanus Apelles».
    O Cardeal Infante D. Afonso, levado pelo amor das antiguidades, criou em Évora na sua Quinta de Valverde uma colecção epigráfica. É neste ambiente que no espírito de Francisco se desenvolve o amor das coisas antigas e desperta o desejo de conhecer a Itália. Talvez com algum exagero, escreve no Da Pintura Antigua: «neste lugar seja-me a mim lícito dizer como fui o primeiro que n'este Reino louvei e apregoei ser perfeita a antiguidade, e não haver outro primor nas obras, e isto em tempo que todos quasi querião zombar disso, sendo eu moço e servindo ao Infante Dom Fernando e ao sereníssimo Cardeal Dom Afonso, meu Senhor. E o conhecer isto me fez desejar de ir ver Roma».
    Mas não era apenas a curiosidade arqueológica que movia o seu cora­ção. A esta sua formação, acresce a influência exercida no seu espírito pela obra dos artistas atraídos à cidade de Évora, onde floresceram importantes oficinas de pintura e trabalhou Nicolau de Chanterene para estimular no ânimo de Francisco o gosto pela arte, sobretudo nas formas italianas que de um modo titubeante se manifestavam já, de há algumas décadas, em Portugal. Como filho e colaborador do principal iluminador do reino, teve fácil acesso às iluminuras da Bíblia de Belém e do Livro das Sentenças  executadas na oficina dos Attavanti, em Florença.
    Filho de um artista, Francisco desde novo sentira amor pela arte. Olhando agora sob outro prisma os tempos da infância, depois de ter lido Plínio, escreve: «a arte da plastiké é muito antiga e por ella comecei eu, sendo moço, a aprender. Esta é sculpir em barro, e Praxiteles lhe cha­mava mãe da scultura, mas eu lhe chamo madrasta, e à pintura ou desenho legítima sua mãe». Superada a recordação da infância, o valor atri­buído à pintura ou desenho tem muito a ver com a teoria defendida por Francisco de Holanda, e que em parte mais avançada deste trabalho será analisada, mas está à partida em ligação com a sua formação artística. Nas­cido de um iluminador, é natural que desde novo se familiarizasse com a mesma arte. Evocando essa aprendizagem, escreve no prefácio do Da Pintura Antigua: «eu, que som o menor dos grandes desenhadores, desejo de minha parte quanto posso não esconder, nem deixar assi perder, quanto he maior do quê se sabe, esta nobelissima arte que a mi por meu destino coube em sorte: durando-me fielmente do começo de a mocidade até agora», e acrescenta: «E muito grandes e infinitas graças dou eu pri­meiro ao Summo Mestre e Imortal, e depois as dou a meu pai, e muito em mercê lhe tenho que approvando o bom costume dos Atheneenses teve providência de me não desviar minha própria índole e natureza, e me deixou seguir a arte da Sabedoria a mi mais segura e excelente de quan­tas há n'este grão mundo». Esta «arte da Sabedoria» era a iluminura ou miniatura. No penúltimo capítulo do tratado Da Pintura Antigua mostra o favor que tal arte lhe merece: «aqui ponho eu a illuminaçam em que me eu criei, pela obra que com pincel se faz mais delicadamente e mais suave e divina: e que é grande parte e muito necessário o começar por ella, para a perfeição e paciência e para as mizclas de todos as cores da pintura». Mas havia um determinado tipo de iluminura que gozava da predilecção do Holanda, como se lê no parágrafo seguinte: «A illuminaçam de branco e preto sobre pergaminho virgem e toques d'ouro moído: esta é minha própria arte esta. é a própria celestial maneira de pintura em este mundo». Algumas linhas mais à frente acrescenta que «pola vertude do desenho e das mizclas da illuminaçam, minha arte» se lhe tornara fácil pintar a óleo.
   O Holanda participava já nos trabalhos paternos, como testemunha no quarto Diálogo Romano, referindo uma das suas invenções: «Sendo eu moço, antes de me El Rei nosso Senhor mandar para Itália, estando eu em Évora, fazendo umas duas histórias, de preto e branco, uma da Sauda­ção de Nossa Senhora e a outra do Espírito Santo para um breviário solene de sua Alteza, eu achei por mi mesmo aquela maneira de iluminar de átomos e de névoa». A obra referida deve ser o Livro de Horas de D. Manuel, que se conserva no Museu Nacional de Arte Antiga em Lisboa.
    A formação cultural em ambiente humanista, a própria educação artística e os estímulos da novidade despertaram no seu espírito o desejo de se deslocar a Roma. 
    
    II – NA ITÁLIA
    
    O desejo de Francisco de Holanda de ir a Itália encontrou eco favo­rável no ânimo dos seus protectores, a que diversas vezes se mostrará reconhecido, nos seus escritos. No prefácio do Da Pintura Antigua dirige-se agradecido, a D. João III: «a vós muito glorioso e Augusto Rei e Senhor, dou eu outras tantas graças pela ajuda que até agora me tem dado (man­dando-me ir ver Itália) em bens que, ainda que se a nau alagasse, e a cidade saqueada estivesse ardendo, eu posso sem impedimento de carga leve­mente comigo trazer a nado». Aos infantes, irmãos do rei, designada­mente D. Afonso e D. Luís (D. Fernando era já falecido), alude, igualmente grato, no início do primeiro Diálogo em Roma. Que idade teria nessa altura? A resposta dá-a no tratado De Quanto Serve a Sciência do Desenho: «Sendo eu de idade XX anos me mandou El Rei vosso avô a ver Itália e trazer-lhe muitos desenhos de cousas notáveis della».
    Já acima se indicou a data provável da chegada do Holanda à Itália. O terceiro Diálogo, segundo refere logo no início, realizou-se no dia do casamento de Octávio Farnese com Margarida de Parma, isto é, em 4 de Novembro de 1538. O quarto Diálogo, logo no segundo parágrafo, é colocado no dia imediato isto é, 5 de Novembro, e pouco mais à frente o português apresenta-se como «Sendo eu forasteiro, e havendo um ano só que estou nesta terra». Deduz-se naturalmente que a viagem se terá realizado, em princípio, no decorrer de 1537.
    Partido de Lisboa, teve ocasião de visitar, em Valladolid, a imperatriz, infanta D. Isabel, irmã dos seus protectores, que lhe pediria um retrato do imperador, por então em Barcelona, onde o Holanda é surpreendido pela notícia da morte da Duquesa da Saboía, ou seja, da Infanta D. Beatriz de Portugal, o que lhe fez atrasar a viagem, tanto mais que a Barcelona che­gara outro irmão do monarca português, o Infante D. Luís. Falecida a Infanta D. Beatriz na primeira semana de janeiro de 1538, poder-se-á inferir que só lá para fins do mês, quando muito, o Holanda seguia de novo a caminho de Itália.
    Em 18 de junho está em Nice a assistir ao tratado de paz «quando El Rei de França Francisco de Velois (Grande rei nestas obras) veio com trinta mil homens fazer a paz com o Papa Paulo 111 sobre o Imperador que ali nas galés de André Dória veio a Villa Franca que está na enseada, E ali vi aquelas três cortes juntas». Como não parece que o Holanda gas­tasse todo o tempo decorrido entre Janeiro e Junho para chegar de Barce­lona a Nice, é de admitir que já antes da última data se encontrava em Roma, tendo-se deslocado a Nice na peugada do séquito que rodeava o Papa. Aliás no 4.º Diálogo, ocorrido em 5 de Novembro como foi já referido, o Holanda diz «havendo um ano só que estou nesta terra», o que é exage­rado em relação a quem lá tenha chegado apenas no mês de Fevereiro, mas seria inteiramente inaceitável em relação a quem só lá tivesse entrado  em fins de Junho. Do infante D. Luís foi portador de mensagens para o Papa, o Rei de França e o marquês de Gasto.
    No estado actual dos nossos conhecimentos não é possível estabele­cer as relações da viagem de Francisco de Holanda com a embaixada de D. Pedro de Mascarenhas, o homem da plena confiança do Rei de Portugal, que representou em diversas cortes europeias, sempre encarregado de missões importantes. D. Pedro de Mascarenhas representou Portugal junto da Santa Sé de 1537 a 1540 e estas datas, como já vimos em rela­ção à primeira e veremos em relação à segunda, coincidem com as da via­gem de Francisco de Holanda. Se por um lado a viagem deste aparece rodeada de um cariz cultural e apoiada não só pelo rei, mas também por outras personagens animadas por interesses culturais, como o Cardeal Infante D. Afonso, que em 28 de Setembro de 1539 lhe assinava uma mercê de 20 cruzados, por outro lado apresenta-se-nos investido e sobretudo preocupado com as funções de informar o Rei de Portugal das novidades artísticas de Itália, mas também de um aspecto particular, qual era o da arquitectura militar. Com esse fim visita e desenha as mais modernas fortalezas da Itália, acontecendo-lhe mesmo de ser preso, como suspeito, quando desenhava a fortaleza de Pesaro. Das relações com o Mascarenhas, pela boca do Holanda apenas sabemos que executou a cópia da imagem do Salvador existente em S. João de Latrão, a qual a rainha de Portugal pedira ao embaixador, e em 5 de Novembro de 1538, data do quarto Diálogo, foi intimado «para ir a casa do Papa», mas não se preocupou com essa ordem, talvez porque de facto se não sentisse vinculado ao embaixador.
    Em Roma valer-lhe-iam os conhecimentos de outro português, que não refere na sua obra, o Bispo de Viseu D. Miguel da Silva, a quem Cas­tiglione tinha dedicado o Cortegiano, e íntimo amigo de Paulo III, que em 1541 ou 1546 o elevaria à púrpura cardinalícia. A D. Miguel da Silva deverá talvez Francisco de Holanda as facilidades que encontrou em Roma, pois o terá recomendado ao Cardeal Alexandro Farnese, mecenas das artes e das letras, ao secretário pontifício Blosio Palladio e a Lattanzio Tolomei, humanista e arqueólogo, que exercia na altura as funções de embaixador em Roma da República de Siena, o qual introduziu o português na amizade de Miguel Ângelo e de Vittoria Colonna. Estes conhecimentos e o prestí­gio de que o Holanda gozava como protegido do rei de Portugal deram-lhe rápido acesso ao meio artístico romano.
    Francisco de Holanda, ao contrário do que escreveram os primeiros autores que trataram da sua vida, não permaneceu na Itália mais de três anos. A maior parte desse tempo despendeu-o em Roma, distribuído pelo estudo e desenho das obras de arte antigas (estátuas, ruínas arqueológicas), pela visita aos estaleiros de construção de S. Pedro e a outras obras em curso ou recentes e no contacto com os artistas e literatos que lhe fornecerão a bagagem teórica para os seus escritos. O à-vontade com que se movia em Roma é testemunhado, entre outras passagens, por aquela onde nos fala de um dos seus primeiros trabalhos aí executados (entre a chegada à cidade pontifícia e a data dos diálogos, Outubro de 1538), a cópia da imagem do Salvador que a tradição atribui a S. Lucas e existente na igreja de São João de Latrão. Devido à aura mítica que a rodeava – pois se tratava de uma imagem de Cristo, que nem ao próprio evangelista fora dado pintar, uma vez que, quando se dispunha a fazê-lo, ela teria aparecido milagrosamente no quadro adrede preparado – e às dificuldades postas pelos religiosos que a guardavam, ninguém tivera até então a oportunidade de a reproduzir. Como porém se tratava de um pedido da Rainha de Portugal, Francisco de Holanda obteve autorização de a copiar, o que fez «com grandes tra­balhos dos confrades e do bispo de São João». O acontecimento encheu-o de orgulho e autoconfiança, tanto mais que era a primeira vez que pintava a óleo, saindo-se com êxito, e os encontros que pelo caminho teve nessa ocasião com Miguel Ângelo abriram as portas à sua familiaridade com o grande artista.
    O primeiro ano da estadia na Itália foi interrompido pela viagem, talvez na companhia do embaixador de Portugal, para assistir à celebração da trégua de Nice, em 18 de junho de 1538. É natural que seguisse o mesmo trajecto do papa, que atravessou a Toscana, com paragem em Luca e visita a Parma e a Piacenza. Daqui o Holanda mandou ao infante D. Luís um dese­nho com a formação do exército francês.
    Em três domingos sucessivos, de que o último coincide com o cele­bração das núpcias de Octávio Farnese com Margarida de Parma, em 4 de Novembro de 1538, têm lugar os célebres diálogos em que intervém Miguel Ângelo. Os dois primeiros, em que está presente Vittória Colonna, ausente no terceiro por causa do casamento, realizaram-se em 14 e 21 de Outubro. O quarto diálogo, com protagonistas, argumento e local diversos, é colocado no dia imediato ao do terceiro, por conseguinte, em 5 de Novembro de 1538, no «scriptorium» do iluminador D. Júlio de Mace­dónia (Júlio Clóvio), em casa do Cardeal Grimani. 
    Em 6 de Abril de 1539, dia de Páscoa, estava em Roma, pois anotou, como privilégio que mais o honrara, ter recebido nesse dia a comunhão das mãos do Papa Paulo III «com os embaixadores dos reis cristãos e alguns senhores romanos somente».
    Em Agosto de 1539, António da Sangallo e Jacopo Meleghino des­locam-se a Tivoli para um estudo das obras do rio para a Fábrica de São Pedro, sendo provável que Francisco de Holanda seguisse na sua compa­nhia, aproveitando a viagem para fazer o desenho do templo romano e da cascata de Tivoli, que inseriu no livro das Antigualhas. 
    Francisco de Holanda viajou pela Itália. Para além das já referidas deslocações a Nice e a Tivoli, certamente isoladas, não é possível dizer-se se as restantes viagens se inseriram numa sequência contínua ou se, pelo contrário, se distribuem por vários momentos.
    Uma referência a Benvenuto Cellini faz supor que terá saldo de Roma antes de Novembro de 1539, data em que o famoso ourives se viu livre do cárcere. Incluindo-o no segundo lugar da tábua «dos famosos enta­lhadores de corniolas», assim o refere: «Benvenutto florentim que o papa Paulo tinha preso no Castelo de Sant'Angello».
    Se o Holanda tivesse conhecimento da sua libertação deveria dizer «que o papa Paulo teve preso». Este argumento não é, porém, suficiente para tirar uma conclusão definitiva.
    Pelo contrário, uma referência ao modelo em madeira para a Igreja de S. Pedro, feito por António da Sangallo il Giovane, leva-nos a atrasar a data da última passagem do Holanda em Roma. Com efeito, assim escreve «(...) mestre António de Sangallo (...) acaba agora a Igreja de São Pedro com grande cuidado. E eu vi o modelo de sua mão, feito de madeira mui perfeito na mesma igreja». Correspondendo este modelo «feito» por António da Sangallo ao executado sob a sua direcção por António Labacco, entre Julho de 1539 e os primeiros meses de 1541, o Holanda não o podia ver «perfeito» antes do fim e de qualquer modo pelo menos após os meados de 1540.
    Francisco de Holanda ter-se-á, por conseguinte, deslocado a Nápoles em finais de 1539, ano de que data um dos seus desenhos: «Situs ubi con­flagratio puteolana. Ann. MDXXXIX». Em Fevereiro de 1540 ainda lá  se encontrava, datando assim o desenho do Averno: «Horrendas fauces Averni ann. MDXXX. mens. Februa. sic. vidi et posui». A partir de Nápoles, onde fez vários desenhos, visitou Barletta, para desenhar o cas­telo, assim como, no caminho entre Roma e Nápoles, desenhou as forti­ficações de Terracina e Gaeta e a ponte de Garigliano.
    Se admitirmos que Francisco de Holanda na viagem de chegada ou por ocasião da deslocação a Nisa, teve oportunidade de ver e desenhar a Ribeira de Génova, a fortaleza de Sarzana, os monumentos da Praça dos Milagres de Pisa, as vilas renascimentais de Toscana (de que apenas resta no seu álbum o intróito) e possivelmente a Fortessa da Basso de Florença, assim como de ver pelo menos a Catedral e o Palácio Público de Siena, e ainda de desenhar o Poço de S. Patrício, feito por António da Sangallo il Giovane, em Orvieto, é de admitir que «La Rocha» de Civitá Castellana, assim como a Ponte de Augusto, em Narni, pudessem ser desenhados em qualquer viagem a partir de Roma, se não já naquela que talvez fosse do regresso e lhe permitiu desenhar o aqueduto e o castelo de Spoleto, em Loreto a capela e uma vista da povoação, em Ancona o Arco de Trajano, a Villa do Monte Imperiale, as fortificações de Pesaro e as de Ferrara; em Pádua, além das fortificações desenhou a igreja de Santo António e a estátua do Gattamelata.
    Em que data passaria o Holanda em Veneza? Podemos conjecturá-la apenas a partir das suas referências a Sebastiano Sérlio e do seu desenho da Loggetta da Praça de S. Marcos. A Sérlio refere-se no capítulo sobre a arquitectura, em que aliás transcreve frases completas do Livro IV da obra do bolonhês, como adiante veremos. Este Livro IV, Regole Generali di Architettura, foi o primeiro a ser publicado em Veneza, em 1537, reedi­tado depois em Fevereiro de 1540, antes que saísse o Livro III dedicado a Le Antiquità di Roma e le altre che sono in Italia e fuori d'Italia. Referindo-se aos grandes arquitectos dos últimos tempos na Itália, depois de citar Miguel Ângelo, Bramante, Baldassare Peruzzi, António da Sangallo e Jacopo Meleghino, acrescenta: «O último destes é Bastião Sérlio, bolonhês, que escreveu da arquitectura, o qual me deu na cidade de Veneza o seu livro da sua própria mão». Esta referência leva portanto a supor que não tinha saído o outro livro de Sérlio, e que, por conseguinte, estamos em data anterior a Março de 1540. Pode ser que a informação sobre os traba­lhos preliminares para a publicação do Livro III obtida logo na altura esteja na base da outra referência a Sérlio na lista de «os famosos architecto­res, dos modernosas acrescentada ao Da Pintura Antigua: «Bastião Sérlio, bolognês, que compôs uns livros d'arquitectura, que agora andam em Veneza». De qualquer modo o contacto com Sérlio efectuar-se-ia antes da partida deste para França em Agosto ou Setembro de 1541.
    Em Veneza o Holanda desenhou a Praça de S. Marcos, a porta da Catedral e os cavalos de bronze, o Arsenal, a estátua do Colleone e o retrato do Doge. Mas o único elemento que permite referências cronológicas é a Loggeta, de Jacopo Sansovino, iniciada em fins de 1537 e concluída na parte arquitectónica em 1539. O nosso português desenhou-a nesta fase, antes de receber a decoração final, de que seria ornada apenas em 1545.
    De Veneza, Francisco de Holanda passou ainda por Milão, onde dese­nhou a fortaleza de La Rochetta, por Pavia e Moncalieri, saindo da Itália pelo norte, atravessando Monte Cénis, numa altura em que ainda não havia terminado o Inverno. Com efeito os Alpes estão cobertos de neve e, no desenho do Holanda, alguns dos seus companheiros de viagem descem os declives sentados em feixes de ramaria. Estamos possivelmente em fins do inverno de 1540-1541. O caminho do regresso prosseguiu por Fon­taine de Vaucluse, Avignon, Pont du Gard, chegando, depois de atravessar o sudoeste de França, a Bayonne, prosseguindo por Fuenterrabia, San Sebastian e Tolosa, em Espanha, retomando a estrada inicial em Valladolid. 
    Antes de Dezembro de 1541 Francisco de Holanda chegou a Portugal, infere-se de uma passarem do tratado Da Sciência do Desenbo em que escreve: «se serviu de mi El Rei e o Infante na fortaleza de Mazagão que há feito por meu desegno e modello, sendo a primeira força bem fortalecida que se fez em Africa, a qual desegnei vindo de Itália e de França, de desegnar por minhas mãos e midir as principais fortalezas do mundo». Esta forta­leza começou a construir-se em 15 de Dezembro de 1541, sem que no entanto fosse seguido à risca, pelo menos em relação aos materiais, o pro­jecto do Holanda, talvez com modificações introduzidos, após a visita in loco, pelo engenheiro Benedetto da Ravenna.
    Ao contrário do que se escreveu depois de Joaquim José Ferreira Gordo, e incluindo o próprio Joaquim de Vasconcelos, foi curta a estadia de Francisco de Holanda na Itália. Durou apenas três anos, passados na maior parte em Roma, mas sem excluir visitas a outras regiões da Itália, onde na altura se trabalhava em obras de arte e fortificações militares, com demoras mais acentuadas na Toscana, em Nápoles e em Veneza.
    Foi esta permanência de três anos bem aproveitados que possibilitou a formação teórica de Francisco de Holanda, tal como aparece nos seus escritos, e orientou em nova direcção a sua actividade artística. 
    
    III – OBRAS
    
    Regressado da Itália, Francisco de Holanda resolveu divulgar as ideias que trouxe, escrevendo o tratado Da Pintura Antigua, cuja segunda parte são os célebres Diálogos, a que seguiram outras obras menores: o Da Fábrica que falece ha cidade de Lisboa e o De quanto serve a Sciência do Desenho e Enten­dimento da Pintura. Reuniu os desenhos que trouxe da Itália num volume, o Das Antigualhas, do mesmo modo que num outro volume, o De Aetati­bus Mundi Imagines, reuniria desenhos posteriores.
    A execução das obras teóricas, sobretudo da primeira, assim a justifica: «Asi que pola nobreza da pintura e polo que eu em Roma aprendi, com o que mais vou descobrindo e conhecendo da sua excelência por não o deixar perder, e enterrar de todo a cousa tão dina de ser conhecida de todos os ilustres engenhos de minha pátria determinei de escrever este livro Da Pintura Antigua».
    O Da Fábrica tem a pretensão de vencer a apatia de um jovem rei, D. Sebastião, em relação aos problemas urbanísticos e militares da capital do reino, Lisboa: «determinei (...) de deixar antes da minha morte a V. A. muito serenissimo Rei e Senhor esta breve lembrança e repairo de Lisboa, que tão pouco conta com isso tem e que tanto lhe releva». A idêntico sentimento, acrescentado ao desgosto de ser esquecido pelo monarca, se deve o Da Sciência do Desenho: «hé para que V. A. conheça não quão pouco se perde em perder o meu serviço, senão para que saiba quando alguma hora tiver algum outro entendimento melhor que o meu o como se há delle de aproveitaras. No último período da vida, em que se sente assim amargamente esquecido, terá executado a maior parte dos desenhos do De Aetatibus Mundi Imagines. 
    
    1. Da Pintura Antigua
    
    O Da Pintura Antigua divide-se em dois livros, sendo o primeiro um tratado com quarenta e dois capítulos, em que trata da essência e da origem da pintura, da preparação do pintor, do valor da antiguidade, das «partes» fundamentais da pintura: invenção ou ideia, proporção ou simetria, e decoro ou decência. A seguir ao capítulo sobre a proporção inclui um sobre a «physiognomonica» e vários aspectos concretos (posições da figura humana, pintura de animais, de histórias, de imagens sacras e alegóricas), sobre a luz, o claro-escuro e as cores. A seguir ao decoro insere dois capítulos sobre a perspectiva, um sobre o desenho de escorço, e termina com três capítulos, dedicado o primeiro à escultura, o segundo à arquitectura e o último a «todos os géneros e modos de pintar».
    O segundo livro é constituído por quatro diálogos, intervindo, Miguel Ângelo nos três primeiros, do mesmo modo que, em lugar secundário, Lattanzio Tolomei, enquanto Vittoria Colonna sua patrocinadora, está apenas presente no primeiro e no segundo, e o quarto tem por interlocuto­res, além do Holanda, como os precedentes, o iluminador Júlio Clóvio, o incisor Valério Belli e um tal Camillo que se deve identificar com Giulio Camillo Delminio, depois membro da Academia della Virtú.
    O primeiro livro encerra com a data correspondente a 18 de Fevereiro de 1548: «Fazia, em Lisboa, a primeira Dominga da Coresma de 1548».
    O segundo livro encerra no mesmo ano, mas com data diferente: «Acabeio descrever hoje, dia de S. Lucas Evangelista. Em Lisboa, era MDXXXXVIII», ou seja, 18 de Outubro de 1548.
    No fim da obra Francisco de Holanda acrescentou uma «Távoa dos artistas famosos a que elles chamam águias», em seis partes, sendo a pri­meira dedicada aos pintores, a segunda aos «famosos iluminadores da Europa», a terceira aos «famosos scultores de mármor», a quarta aos «famosos architectores, dos modernos», em que se inclui, a quinta aos «famosos entalhadores de lâmina de cobre» e a última aos «famosos entalha­dores de corniolas».
    Em 1563, sendo ainda vivo o autor, um outro português, Manuel Denis, residente em Espanha, traduziu para a língua castelhana o «Da Pintura Antigua», tradução que se conserva na Academia de Belas Artes de Madrid.
    Nos fins do séc. XVIII, José Joaquim Ferreira Gordo encontrou na biblioteca particular de um amador de arte, de que não nos deixou o nome, o manuscrito em língua portuguesa da obra Da Pintura Antigua e fez, em 1790, uma cópia que entregou à Academia de Ciências de Lisboa, sendo esta portanto a mais próxima do original. 
    
    EDIÇÕES DO DA PINTURA ANTIGUA
    
    1. Da Pintura Antigua, folhetim publicado por Joaquim de Vasconcelos in «A Vida Moderna», Porto, 1890 a 1892. 
    2. Da Pintura Antigua. Primeira edição completa desta célebre obra comentada por Joaquim de Vasconcelos. Porto, Renascença Portuguesa, 1918. 
    3. De la Pintura Antigua. Version castellana de Manuel Denis (com prefácio de Elias Tormo). Academia de S. Fernando, Madrid, 1921. Nova edição da tradução espanhola de 1563. 
    4. Tractado de pintura antigua. English translation by A. F. G. Bell, London, 1928.
    5. Da Pintura Antigua. 2.ª edição, Porto, Renascença Portuguesa, 1930.
    6. Opere di Francisco de Holanda. Napoli, Pertella, 1915. Apenas consegui encontrar dois exemplares desta publicação, citada pelo próprio organizador, Achile Pellizzari, um na Biblioteca Hertziana de Roma, e outro na Biblioteca do Kunsthistorisches Ins­titut in Florenz. Segundo referia Elias Tormo, em 1940, existe pelo menos outro, na Biblioteca Vaticana. 
    7. Da Pintura Antiga. Introdução e notas de Angel González Garcia. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984. 
    8. Da Pintura Antiga. Introdução, notas e comentários de José da Felicidade Alves, Lisboa, Livros Horizonte, 1984. 
    
    EDIÇÕES SÓ DOS DIÁLOGOS
    
    1. Raczinsky, Conde A. – Les Arts en Portugal, lettres adressées a la Societé Artistique e Scientifique de Berlin, accompagnées de documents. Paris, Renouard, 1846. Tradução feita pelo pintor M. Roquemont com lacunas e com frequência infiel. Foi porém a primeira a chamar a atenção internacional para a obra do Holanda. 
    2. Clement, Charles – Michel Ange d'aprés des nouveaux documents, in «Revue des Deux Mondes», XXIX année, 1 juillet 1850, pp. 60-108. 
    3. Siemiénski, Lucjan – Kartka z dziejow i poezji oraz Franciszka d'Ollanda rzecz o malarstwie z roku, Zytomiers, Spólka Wydanica Ksiegarska, 1860.
    4. Fournier, Th. – Die Manuscript des F. D'Holanda in «Jahrbuch für Kunstwisenschaft», Zahn, I, 1868, pp. 335-358. 
    5. Grimm, H. – Leben Michelangelo's, Hannover, 1873, pp. 227-293 (trad. parcial). 
    6. Gotti, Aurelio – Vita di Micbelangelo Buonarrotti, narrata con l'aiuto di nuovi documenti, vol. 1, Firenze, 1875, pp. 244 e ss. 
    7. Manuscrit de François de Hollande. De la Peinture Ancienne. 1549 – Livre Second in Thomaz Mendes Norton, Ouvres d'Art de Raphael au Monastère de Refojos do Lima en Portugal. Lisboa, 1888. Trad. de Louis Carlomain Capdeville. 
    8. Quatro diálogos da pintura antigua. Francisco de Holanda, Miguel Ângelo, Vittoria Colona, Lattanzio Tolomei interlocutores em Roma. Edição cuidada por Joaquim de Vas­concelos. Porto, Renascença Portuguesa, 1896. Tiragem reduzida (100 exemplares). 
    9. Vier Gesprücbe Uber die Malerei Gefübrt Zu Rom 1538. Original text mit Cbersetzung, Einleitung, Beilagen und Erlaüterungen von Joaquim de Vasconcelos. Wien, Verlag von Carl Graeses, 1899. 
    10. Charles Holroyd – Michelangelo Buonarroli by Charles Holroyd. With translations of tbe life of the master by his scolar Ascanio Condivi and three dialogues from portuquese by Francisco D'Holanda. London, Duckwort, 1903. 
    11. Quatre dialogues sur la peinture. Trad. Leo Rouanet. Paris, Champion, 1911.
    12. F. J. Sánchez Cantón, Fuentes literárias para la Historia del Arte Español. Tomo I. Madrid, Junta para ]a Ampliación de Estudios e Investigaciones Cientificas – Centro de Estudios Historicos, 1923. Pp. 35-115: Dialogos de la Pintura. 
    13. I Dialogbi michelangioleschi di Francisco de Holanda. Trad. di Maria Antonietta Bessone Aurelij. Roma, Maglione e Strini, 1924. 
    14. Idem, idem, 2.ª ed., 1925.
    15. Lettere e rime precedute della vita di Ascanio Condivi aggiuntovi al «Dialogo della Pittura» di Francisco de Holanda. A cura di Guido Vitaletti. Torino, Società Edittice Editoriale. Apenas a tradução do Primeiro Diálogo. 
    16. Four dialogues on painting, redered into English by Aubrey F. G. Bell, Oxford, 1928. 
    17. Lettere e rime. A cura di Guido Vitaletti, 2.ª ed., ibidem (1930).
    18. I Dialogbi michelangioleschi di Francisco de Holanda. Trad. di Antonietta Maria Bessone Aurelii. 3.ª ed., 1939. 
    19. Los «Dialogos de la Pintura» de Franscisco de Holanda, apêndice ao capítulo I de «Historia de las Ideas Esteticas en España», de Marcelino Menendez Pelayo, vol. II, Madrid, 1940. 
    20. Parla Michelangelo. A cura di Aldo L. Cerchiari. Milano, Torinelli, 1946. Edição artística ilustrada, apenas das passagens correspondentes às palavras de Miguel Ângelo. 
    21. Colloqui con Michelangelo. A cura di Emilio Radius. Milano, Editrice Anto­nioli, (1945). 
    22. I Dialoghi michelangioleschi di Francisco d'Ollanda. A cura di Antonietta Maria Bessone Aurelii, 4.ª ed., Roma, F.Ili Palombi, 1953. 
    23. Diálogos de Roma. Prefácio e notas de Manuel Mendes. Lisboa, Sá da Costa, 1955. 
    24. Dialoghi romani con Michelangelo. Trad. di L. Marchiori. Introd. e note a cura di E. Spina Barelli. Milano, Rizzoli, 1964. 
    25. Les Dialogues de Roma de FranFois de Hollande, trad. José Frèches, Paris, Centro Cultural Português – Fundacão Calouste Gulbenkian, 1973. 
    26. Dialoguri romane cu Michelangaelo. Traducera Siprefatã deVictor Ieronim Stoichitã. Bucuresti, Ed. Meridiane, 1974.
    27. Diálogos em Roma. Introdução, notas e comentários de José da Felicidade Alves, Lisboa, Livros Horizonte, l984.
    
    2. Do tirar polo natural
    
    Pequeno tratado em forma de diálogo, foi concluído em Santarém em 1549. Não se conhece o original. A cópia mais antiga está na Academia de Belas Artes de S. Fernando de Madrid. Uma cópia feita em 1790 por M. Joaquim Ferreira Gordo existe na Academia das Ciências de Lisboa. 
    
    EDIÇÕES:
    
    1. Do tirar polo natural, em folhetim, in «A Vida Moderna» (Semanário), Porto, 1892, n.ºs 10 a 19 (20/10-22/12/1892). 
    2. Del Sacar Por El  Natural, incluído na edição do «De La Pintura Antigua», Madrid, 1921. 
    3. Die Manuscriple des Francesco d'Ollanda (von der Portraitmalerei). Introd. e trad. Th. Fournier, in «Jahrbücher für Kunstwisenschaft» I, Leipzig, (1868). 
    4. Do Tirar Polo Natural. Introdução, notas e comentários de José da Felicidade Alves. Lisboa, Livros Horizonte, 1984. 
    Que saibamos, não apareceu ainda a edição comentada do Do Tirar polo Natural anunciada há alguns anos por John Bury. 
    
    3. Da Fábrica que falece ha Cidade de Lisboa
    
    Ao contrário de outros tratados de urbanística do séc. XV e XVI, este caracteriza-se por não visar um modelo utópico de cidade, mas uma povoação efectivamente existente, no intuito de resolver os seus mais agudos problemas. Sem esquecer, no primeiro capítulo, uma breve referência à origem histórica da cidade, e, no segundo, uma digressão alegó­rica sobre a cidade interior, a alma, descreve e desenha as principais obras de que carecia a Lisboa da segunda metade de quinhentos: a «roca» ou castelo no centro, e, à volta, as novas muralhas com os seus bastiões e baluartes; a defesa da embocadura do rio Tejo e do porto de mar, a constru­ção dos paços reais de Enxobregas e respectivo parque, a reconstrução das pontes e calçadas de acesso a Lisboa, com as respectivas cruzes-miliá­rios, como lugar mais sublime o templo, dedicado a S. Sebastião, onomástico do rei, e, a servir de coroa a toda a obra, como local mais precioso, a capela do Santíssimo Sacramento.
    Este tratado é datado de 1571 e o manuscrito original, que se conserva na Biblioteca Nacional da Ajuda, é acompanhado do parecer do inquisidor Frei Bartolomeu Ferreira, de 13 de Abril de 1576, com vista à publicação da obra, que não chegou então a concretizar-se.
    
    EDIÇÕES DO DA FÁBRICA
    
    1. Da Fábrica que fallece à cidade de Lisboa. Da Sciência do Desenho. Edição crítica (segundo o autógrafo de 1571), por Joaquim de Vasconcelos, in «Archeología Artistica», tomo VI; e separata (100 exemplares), Porto, Imprensa Portuguesa, 1879.
    2. Da Fábrica que Falece à cidade de Lisboa, edição preparada por Alberto Cortês (1918), que agora publica Vergílio Correia, in «Archivo Español de Arte e Archeolo­gia», n.º 15, pp. 209-225, Madrid, 1929; e separata (100 exemplares).
    3. Fac-simile in Jorge Segurado, Francisco d'Olanda, Lisboa, Ed. Excelsior, 1961, pp. 67-130.
    4. Da Fábrica que falece à cidade de Lisboa. Introdução, notas e comentários de José da Felicidade Alves. Lisboa, Livros Horizonte, 1984. 
    4. De quanto serve a Sciência do Desenho e Entendimento da Arte da Pintura, na Republica Christam asi na Paz como na Guerra
    
    É um tratado com data de julho de 1571, anexo ao anterior e certa­mente destinado a publicação simultânea. Sem interesse de maior, uma vez que repete conceitos já presentes sobretudo no «Da Pintura Antigua», o capí­tulo mais interessante, do ponto de vista teórico, talvez seja o segundo, em que o Holanda tenta aprofundar a noção filosófica de pintura ou dese­nho – vocábulos frequentemente equívocos na sua obra. Nos restantes capítulos procura mostrar o apreço em que o desenho ou a pintura foram tidos na antiguidade e a sua utilidade ao serviço de Deus e do Rei tanto na guerra como nas actividades ordinárias, pelo que defende no penúl­timo capítulo a necessidade de o monarca adquirir neste domínio um mí­nimo de conhecimentos, acabando por apresentar como exemplo a seguir o de Carlos V, no modo como um dia o recebeu na sua corte – referência em que visivelmente se dirige a D. Sebastião, a quem o tratado é dedicado. 
    
    EDIÇÕES:
    
    1. Da Fábrica que fallece à cidade de Lisboa. Da Sciência do Desenho. Edição crítica (segundo o autógrafo de 1571), por Joaquim de Vasconcelos, in «Archeologia Artis­tica», tomo VI, 1873-1878, e em separata, de 100 exemplares, Porto, Imprensa Portu­guesa, 1879.
    2. Da Fábrica que falece à idade de Lisboa, edição preparada por Alberto Cortês (1918), que agora publica Vergílio Correia, in Archivo Español de Arte y Archeologia», n.º 15, pág. 209-225, Madrid, 1929 e em separata de 100 exemplares.
    3. Fac-simile in Jorge Segurado, Francisco de d'Ollanda, Lisboa, Ed. Excelsior, 1961.
    4. Copie d'une partie du manuscrit intitulé «Des monuwents qui manquent à lla ville de Lisbonne» par Francois de Holland année 1571, in Thomaz Mendes Norton, Ouvres d'Art de Rapbael au Monastère de Refojos do Lima en Portugal, Lisboa, 1888, pp. 148-156. É a tradução do «.De quanto serve a Sciência do Desenho», por Louis Carlomain Capdeville. 
    5. De quanto serve a Sciência do Desenbo e Entendimento da Arte da Pintura na Repu­blica Cristi, assim na Paz como na Guerra. Introdução, notas e comentários de José da Felicidade Alves. Lisboa, Livros Horizonte. Publicação anunciada para fins de 1985. 
    
    4. Outros escritos de Francisco de Holanda
    
    I – Carta a Michelangelo. Datada de 15 de Agosto de 1553, encontra-se na Casa Buonarroti, em Florença. Publicada em: 
    
    1. Aurélio Gotti, Vita di Michelangelo, vol. I, Firenze, 1875, pág. 246-247.
    2. Archeologia artística, fasc. IV, Porto, 1877, pág. 165-166.
    3. Da Pintura Antigua, ed. de Joaquim de Vasconcelos, 1918, pág. 237.
    4. Jorge Segurado, Francisco d'Ollanda, cit., (fac-simile, a pág. 17-19).
    5. A. M. Bessone Aurelii, I dialogbi michelangioleschi. Roma, 1939.
    6. Paola Barocchi, Il Carteggio de Michelangelo, vol. VI, Firenze, 1983. 
    
    II – Carta ao Prior do Crato, D. António. 6 de Maio de 1579. No Arquivo da Casa do Duque de Alba, em Madrid. Publicada em 
    
    1. Homenage a Menendez Pelayo, Madrid, 1935.
    2. Jorge Segurado, l. c. (fac-simile a pp. 461-463). 
    
    III – Carta a Filipe II. Sem data. Segundo Joaquim de Vasconcelos, é de 22 de Janeiro de 1572. O original está no Arquivo Real de Simancas, E. 390. Publicada em: 
    
    1. Joaquim de Vasconcelos, Da Pintura Antigua, 1908, p. 339-340.
    2. Jorge Segurado, l. c. (fac-simile, a pp. 257). 
    
    Poderão acrescentar-se a estes escritos também as anotações manuscri­tas autógrafas, acerca de seu pai António de Holanda, num exemplar de Giorgio Vasari, Le Vitte  . (Florença, 1568), secção de Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa.
    
    5. Os Desenhos das Antigualhas
    
    Francisco de Holanda reuniu os desenhos que fez no tempo da sua permanência na Itália num volume a que antepôs o título:
    Reinando em Portugal El Rei Dom João III que Deus tem, Francisco d'Ollanda passou a Itália e das Antigualhas que vio retratou da sua mão todos os desenhos deste livro.
    É um volume de 54 folhas, no formato de 46,5 x 35,5 cm., incluindo 113 desenhos. Os mais antigos datarão de 1538 e até 1564 poderá o Holanda ter introduzido quaisquer retoques, se o livro ainda se encontrava na sua mão, de modo a ser dele a apostilha ao retrato de Miguel Ângelo em que regista a data da sua morte. À data da redacção final do A Sciência do Desenbo, isto é, em 1571, o álbum encontrava-se nas mãos do Infante D. António, devendo ter sido confiscado pelo rei D. Filipe II de Espanha, após o esta­belecimento do seu domínio em Portugal.
    Este códice está actualmente na Biblioteca do Escorial em Espanha. Foi publicado em 1940, pelo Doutor Elias Tormo, com o título seguinte:
    
    Os desenhos das Antigualhas que vio Francisco d'Ollanda, pintor português (1539-1540) publicalos com notas de estudio y preliminares el Prof. E. Tormo, de la Universidade de Madrid. Madrid, Academia de História e Belas Artes, 1940. 
    
    Anteriormente foram reproduzidos na obra, de distribuição limitada e acima referida:
    
    Opere di Francisco de Holanda, Napoli, Perrela, 1915. A cura di Achile Pellizzari. 
    
    6. De Aetatibus Mundi Imagines 
    
    Depois do regresso a Portugal, além de outras actividades que é difícil documentar, Francisco de Holanda continuou a desenhar. Até há pouco tempo pensou-se que os álbuns com estes desenhos conhecidos por designações como Louvores Eternos, dada como concluída em 1569, ou De Cristo Homem, terminado em 1583, ou ainda Idades do Homem se have­riam perdido.
    Em 1953 o Dr. Francisco Cordeiro Blanco descobriu na Biblioteca Nacional de Madrid um álbum de desenhos, intitulado De Aetatibus Mundi Imagines que identificou como obra de Francisco de Holanda (Biblioteca Nacional de Madrid, Secção de Belas Artes, cota 14/26).
    É um grande códice com 89 folhas (178 páginas), no formato aproxi­mado de 0,42x0,28 cm., contendo 155 desenhos (incluída a cobertura), alguns aguarelados a cor. Quinze destes desenhos foram datados entre Agosto de 1545 e a Sexta-feira Santa de 1573.
    Em 1961, na obra dedicada ao Holanda e já citada, o arquitecto Jorge Segurado escrevia: «este códice vai ser publicado em fac-simile, com as notas e estudo do Dr. Cordeiro Blanco já falecido, sob a direcção do Dr. Armando Vieira dos Santos, por encargo do Instituto de Alta Cultura». Infelizmente o Dr. Armando Vieira dos Santos cedo deixaria o rol dos vivos.
    Finalmente os desenhos foram publicados, em luxuosa edição, em 1983, sob a direcção do arquitecto Jorge Segurado, pelo Comissariado Organizador da XVII Esposição Europeia de Arte e Ciência e Cultura, sob os auspícios do Conselho da Europa: 
    
    Francisco de Holanda, De Aetatibus Mundi Imagines. Livro das Idades. Lisboa, 1983. Ed. fac-similada com introdução e notas de Jorge Segurado.
    
    IV – FORTUNA CRÍTICA
    
    A obra de Francisco de Holanda não chegou a ser impressa no seu tempo, e isso por força dos acontecimentos que rodearam a parte final da sua vida, designadamente da morte de D. João III, de quem o nosso autor foi conselheiro artístico, e da crise política que se lhe seguiu, com o inter­regno e o governo de um rei imaturo, a qual culminará no desastre de Alcácer Quibir e na anexação de Portugal à coroa de Espanha.
    O extravio do manuscrito original do Da Pintura Antigua não permite confirmar a intenção de estampar esta obra, mas tal intenção deduz-se do facto de que foi pensada e preparada a publicação de um trabalho de menor fôlego, qual é o tratado Da Fábrica que Falece ha Cidade de Lisboa, que em ordem à sua divulgação recebeu em 13 de Abril de 1576 o parecer favorável (com a ressalva de três pequenas emendas) de Frei Bartolomeu Ferreira, já benévolo censor da 1.ª edição de Os Lusíadas. Para além do nihil obstat doutrinal, o censor avança que tem a dita obra «por muito proveitosa e engenhosa».
    Se bem que não chegasse a ser impressa, a obra literária do Holanda foi objecto de alguma divulgação. Manuel Denis, português desde a infância educado e residente em Castela, possuía uma cópia da obra e terminara já a sua tradução em 1563, um ano antes da morte de Miguel Ângelo, quando estava para começar a construção do Escorial.
    A anexação a Espanha e a consequente polarização cultural de Madrid acentuaram a crise da arte portuguesa e com o andar do tempo outras obras de teoria artística vindas da Itália e divulgados em Espanha tiraram actualidade à obra do Holanda, fazendo correr sobre ela o véu do esquecimento.
    A obra do Holanda estava esquecida, mas não era totalmente ignorada. Diogo Barbosa Machado refere-a em 1747 no Biblioteca Lusitana, numa época de renovação cultural que preanuncia já o século XVIII, e a que não são indiferentes os estímulos de um renovado contacto com a Itália.
    A Academia Real das Sciências de Lisboa assumirá o grato papel de principal impulsionadora da cultura portuguesa, bem documentado nos estudos registados nas «Memórias» que fez publicar. É para a Academia Real das Sciências que Joaquim José Ferreira Gordo realiza investigações nos Arquivos de Madrid e copia as obras do Holanda de que se não conheciam manuscritos em Portugal (o tratado Da Pintura Antigua, incluindo os Diálogos), que em 1790 deposita na biblioteca da referida instituição aca­démica. Nas oficinas gráficas da mesma Academia publica os Apontamentos para a História Civil e Litteraria de Portugal e seus Domínios, collegidos dos Manuscritos assim nacionais, como estrangeiros que existem na Biblioteca Real de Madrid, na do Escurial, e nas de alguns senhores e letrados da Corte de Madrid, inseridos no tomo III, das «Memórias de Literatura Portuguesa publicados pela Academia Real das Sciências de Lisboa» em 1792 (61), onde o nome de Francisco de Holanda reaparece diante dos leitores portugueses. Não chegou porém a ser publicado o manuscrito, guardado na biblioteca da mesma academia, Memórias de Francisco de Ollanda, colligidas de seus escritos e outros autores, em que pela primeira vez se tenta urna meritória reconstituição da sua vida, com erros porém – como a deslocação por duas vezes à Itália e a colocação da sua obra neste país entre 1538 e 1548 – que serão repetidos por outros autores durante um século e meio.
    A partir daí Francisco de Holanda passa a merecer o estudo dos autores portugueses. Primeiramente sob o aspecto biográfico, procurando reunir aos elementos autobiográficos os raros dados sobre a sua vida que é possível recolher nos arquivos. Situam-se nesta linha a Colecção de Memórias Relativas às vidas dos Pintores, Escritores, Arquitectos e Gravadores Portugueses, de Cirilo Wolkmar Machado, assim como as páginas que lhe dedica o Bispo Conde D. Francisco (Cardeal Saraiva) na Lista de Alguns Artistas Portugueses, e A. de Castro e Sousa, na Vida de Francisco de Ollanda, iluminador e arquitecto português, que floresceu no décimo sexto século, ou no Resumo histórico da vida de Francisco de Holanda, e as referências mais extensas do Dictionaire histórico-artistique du Portugal, de A. Raczinsky.
    O autor referido em último lugar publicara no ano anterior (1846; cf. supra) a primeira tradução, que, embora lacunar e nem sempre fiel, foi também a primeira divulgação impressa de uma obra de Francisco de Holanda, os Diálogos, contribuindo assim para chamar a atenção dos estudiosos de todo o mundo para o escrito do autor português. A partir daí a obra do Holanda passava a constituir referência necessária para quantos se ocupavam da história da arte e da historiografia artística do séc. XVI e designadamente para os que se ocupavam de Miguel Ângelo.
    Segue-se a esta divulgação a primeira atitude pública de reserva em relação ao valor da obra do Holanda (e pensa-se apenas nos Diálogos) para conhecer o pensamento artístico de Miguel Ângelo, no trabalho de Alfred von Reumont, em kunst unkünstler in Rom. Zur Zeit Papst Pauls III. Se bem que anotando as fanfarronices despropositadas de uma ou outra passagem, o valor histórico dos Diálogos viria a ser aceite pela maioria dos estudiosos e biógrafos de Miguel Ângelo, desde Aurélio Gotti.
    M. Menendez e Pelayo, na célebre História de Ias ideias estéticas en España, deu grande relevo à obra de Francisco de Holanda, transcrevendo longas passagens dos Diálogos e o mesmo faria no Discurso de recep­ção na Academia de Belas Artes de Madrid. Idêntica ou maior atenção mereceram os Diálogos a Karl Justi, em Die alportugiessche Malerschule, e depois em Michel Angelo.
    Joaquim de Vasconcelos iniciara em 1890 a primeira publicação em língua portuguesa das obras literárias de Francisco de Holanda (cf. supra), e, na impossibilidade de então os publicar, faria também conhecer uma lista descritiva dos desenhos designados como Antiguidades de Itália. Embora mantendo-se numa posição crítica, perfilha o valor histórico da obra holan­diana, sendo o primeiro a sublinhar a impossibilidade de o Holanda se ter deslocado duas vezes à Itália, se bem que mantendo as datas de 1538 a 1548 como as da sua permanência na terra de Miguel Ângelo. Faz interes­santes anotações à obra publicado e só é pena que não tenha dado à luz todos os estudos que, segundo diz, realizou sobre a obra de Francisco de Holanda.
    Em Itália, Achile Pellizzari entusiasma-se com a obra do português e resolve-se a publicá-la, com um amplo estudo introdutório, e a preparar uma edição dos desenhos das Antigualhas. Apenas se conhecem, porém, três exemplares do volume Opere di Francisco de Holanda, datado de Nápo­les (Perrela) 1915, nas bibliotecas Vaticana e Hertziana, de Roma, e na do Kunsthistorisch Institut, de Florença, contendo o texto português e a versão italiana dos Diálogos, seguida da 1.ª parte do Da Pintura, só em português, e dos desenhos Das Antigualhas. O facto de na obra não se encontrarem as 304 notas correspondentes às chamadas inseridas no texto nem a introdução referida na página 119 leva a pensar que a edição não foi concluída, sendo os dois exemplares meras provas de ensaio ofereci­das, por gentileza, às mencionadas bibliotecas. Na obra I trattati attorno le Arti Figurative in Itália e nella Penisola Ibérica que se ficou no Volume Primo – Dall'antichità classica al séc. XIII, A. Pellizzari escreve que Francisco de Holaida organizou «in sintesi lucidissima le idec del suo grande amico florentino, tramandandole ai secoli da venire in opere mira­bili per magistero d'arte e per saldezza di pensiero».
    Em Espanha, F. J. Sanchez Canton inclui os textos do português entre as Fuentes literárias para la historia del Arte Fspahol – sec. XVI.
    Mas a historicidade de Francisco de Holanda nem por isso passou a ser acatada pacificamente por todos os seus leitores. Já em 1905, num trabalho publicado por Hans Tietze, e subordinado ao título Francisco de Holland und Donato Giannoti's Dialoge und Michelangelo aparecem renovadas com mais vigor as críticas negativas a Francisco de Holanda. Mais violentas e radicais seriam as críticas tecidas por Carlo Aru numa comunica­ção apresentada ao I Congresso Nazionale di Studi Romani, publicado depois na revista L'arte de Adolfo Venturi e que, apesar de tudo, Schlosser considera «uma cuidada análise da obra» de Francisco de Holanda. Segundo Aru «i Dialoghi scritti con fini precisamente pratici se no pro­prio esclusivamente personalistici, sono un mediocre componimento lette­rario – modellato sul genere di prosa narrativa piú largamente diffuso in Italia durante il Rinascimento – che ha una trama storicamente vera o verosimile nei riguardi degli interlocutori e dei particolari di tempo e di luogo, ma che a questa trama aggiunge idee che, se possono ritenersi  comunemente divulgate in taluni ambienti artistici romani di circa la metà del Cinquecento, debbono considerarsi tuttavia in completo contrasto con lo spirito, le idee e 1'opera di Michelangelo».
    Para Carlo Aru os Diálogos não correspondem historicamente a verda­deiros colóquios realizados com Miguel Ângelo, mas são uma moda literá­ria, em voga na época, a que o Holanda como muitos autores terá recorrido para expor as suas próprias ideias. O mesmo autor declara que as ideias expressas nos Diálogos pela boca de Miguel Ângelo são fragmentárias e con­traditórias (observação de Aru que não me parece congruente com a afir­mação anterior de que os Diálogos são uma forma literária adoptada pelo português para expor as suas próprias ideias, mas seria muito mais aceitável se admitíssemos que eles de facto são a recolha, ainda que imperfeita, de uma verdadeira conversa, em que o fio seguido não é sempre o da lógica total), mas, apesar de tudo e de um modo que pode bem considerar-se arbi­trário, ousa reuni-las em nove pontos que são urra verdadeira traição às ideias expostas pelos interlocutores dos diálogos.
    Efectivamente, conforme são reunidas por C. Aru, as ideias expostas nos diálogos são fragmentárias e contraditórias. Revelam uma leitura apressada e desatenta dos Diálogos, para não falarmos já no desconheci­mento dos outros escritos do Holanda, bem oportuna para e elaboração de uma crítica segura, e mesmo uma certa falta de rigor histórico na maneira como se comparam com outros escritos da época, apresentando as ideias do Holanda como hauridas em outras obras de então e citando para o caso exactamente aquelas que o português não conhecia, como os escritos de Leonardo. Fragmentária e contraditória mas sobretudo contraditória é a argumentação aduzida por Carlos Aru para negar a validade aos Diálogos. Da análise de Aru emerge uma dupla contradição: por um lado, as ideias expostas nos Diálogos não podem corresponder às ideias de Miguel Ângelo porque são fruto da elaboração pessoal do Holanda, mas correspondem aquelas que na mesma época circulavam na Itália; por outro lado, as ideias estéticas de Miguel Ângelo não são outras que as dos homens da sua época.
    Uma outra estudiosa italiana, Antonieta Maria Bessone Aurelii, autora de uma tradução italiana do Diálogos, que teve quatro edições, não achou dificuldades em refutar as afirmações de Carlos Aru. Mais tarde Bianca Toscano voltaria ao assunto combatendo os argumentos de C. Aru e defendendo com entusiasmo a historicidade dos Diálogos.
    Não se vão agora analisar as objecções contra o valor histórico da obra em causa, nem a resposta que lhe deram as duas estudiosas. Anali­sar-se-ão esses aspectos ao fazer o estudo crítico da obra de Francisco de Holanda, que, infelizmente, só recentemente começou a delinear-se e que exige o estudo global da obra do português.
    As objecções postas por Aru ao Holanda, pelas respostas que tiveram e já se referiram ou porque na época não pareceram dignas de melhor atenção, não impediram que os autores continuassem a apoiar-se no Holanda como uma importante fonte para documentar a evolução das ideias esté­ticas e o pensamento de Miguel Ângelo.
    O próprio Lionello Venturi, cujas omissões Aru invocou (Venturi antes só referira o testemunho do Holanda a propósito do juízo de Miguel Ângelo sobre a pintura fiamenga) na Storia dela Critica d'Arte, em 1936, escrevia genericamente: «Michelangelo Buonarroti non ha scritto un trattato d'arte, ha espresso sporadicatnente alcune idee sull'arte; il porto­ghese Francisco de Holanda altre ne ha raccolte da lui».
    Anthony Blunt, em Artistie Theory in Italy 1450-1600, dizia em 1940: «Além dos escritos (de Miguel Ângelo) restam--nos os testemunhos dos seus contemporâneos. O primeiro de entre estes é o pintor português Francisco de Holanda, que chegou a Roma em 1538 e por certo período fez parte do círculo de Miguel Ângelo com o mestre».
    A publicação de Os Desenhos das Antigualhas levada a cabo pelo Pro­fessor Dr. Elias Tormo, em 1940, fez redobrar o interesse pela obra do português. Depois dessa data publicaram-se na Itália duas novas tradu­ções dos Diálogos (Emílio Radius e L. Marchiori – E. Spina Barelli), além de uma reedição da tradução anterior de A. M. B. Aurelii e de duas edições parciais. Em Portugal apareceu mais uma edição dos Diálogos, a de Manuel Mendes. Nestas publicações considera-se resolvido no sen­tido positivo o problema da historicidade da obra de Francisco de Holanda. Na sequência do interesse que esta desperta, fazem-se os primeiros estudos sobre a estética de Francisco de Holanda, com Mariana Amélia Machado Santos e Rézio Buscaroli, a primeira numa comunicação apresentada ao I Congresso do Mundo Português e o segundo no estudo sobre Il concetto dell'arte nelle parole di Michelangelo. Nos Diálogos (como nas poesias e outros escritos de Miguel Ângelo) se apoiam os seus mais recentes biógrafos e estudiosos, como Robert J. Clements em Michelangelo's Theory of Art ou Charles de Tolnay em The Art an Thought of Michelangelo e em outros escritos. John Bury, depois de um primeiro trabalho sobre a  obra geral do autor Da Pintura Antigua, estuda o seu contributo para a história da fortificação militar, em Francisco de Holanda – A little Known source for the history of fortification in the sixteenth century. Dois anos depois voltará ao problema da autenticidade, em conjunto com o catá­logo das suas obras, em Two Notes on Francisco de Holanda. Em 1981, Rafael Moreira retomou aquele tema em A Arquitectura Militar do Renascimento em Portugal, estudo que evidentemente ultrapassa em muito os limites da obra de Francisco de Holanda. Robert Klein dedicou ao português o seu ensaio Francisco de Holanda e les secrets de l'art.
    A identificação do novo álbum de desenhos, desta vez criação inteira­mente original de Francisco de Holanda, o De Aetatibus Mundi Imagines, anunciada em 1955 por Francisco Cordeiro Blanco, cuja publicação foi prometida em trabalhos sucessivos, não só fez aumentar o fervor dos estu­diosos em relação às obras já conhecidas, como levou também a investigar da existência de outras obras de arte do mesmo artista, quer no domínio da pintura, quer no da arquitectura. Jorge Segurado, que se seguiu a Joa­quim de Vasconcelos como um dos mais apaixonados estudiosos portugueses da obra do nosso autor quinhentista, entre cujos trabalhos avulta o volume que leva o nome de Francisco de D'Ollanda, onde, além do mais, se publicam os fac-símiles do Da Fábrica que falece ha cidade de Lisboa e do anexo De quanto serve a Sciência do Desenbo e Entendimento da Arte da Pintura, cuida a publicação, em 1983, do De Aetatibus Mundi Imagines. Se das dúvidas de novo levantadas à sua historicidade pelo encarregado dos assuntos cul­turais da embaixada italiana em Lisboa, Riccardo Averini, alguma con­clusão é de tirar, é a da necessidade de submeter a uma rigorosa análise crítica a obra de Francisco de Holanda.
    Felizmente esse estudo já se inicia. Assim, a par de uma obra de divulga­ção, de vantajosa difusão entre o público, qual é Francisco de Holanda ­Vida, Pensamento e Obra, de José Stichini Vilela, uma estudiosa francesa, Sylvie Deswarte, que já antes dedicara alguma atenção ao português, começou a publicar alguns estudos críticos dedicados a Francisco de Holanda. 
    O caminho a seguir no estudo da obra de Francisco de Holanda deve arrancar da publicação de uma edição crítica de todos os seus escritos e desenhos e de um trabalho em que a mesma seja enquadrada conveniente­mente no seu tempo, de modo a poder ser devidamente compreendida no seu valor histórico, quer como testemunho da sua época, quer como con­tributo original nos domínios da historiografia da arte. 
    
    NOTA FINAL
    
    Esta «introdução», redigida em 1983, encontrava-se já na tipografia quando nas livrarias apareceram novas edições dos textos de Francisco de Holanda, cuja menção, por altura da revisão de provas, se incluiu ainda no lugar próprio. Anota-se com agrado o contributo que estas novas edições vêm dar para a divulgação dos escritos holandianos.
    Continua, porém, a sentir-se a falta de uma edição diplomática, pelo menos dos tratados de que chegaram até nós os manuscritos quinhen­tistas, acompanhada de adequado aparelho crítico, uma vez que pouco mais se tem feito que reimprimir os textos dados à estampa por Joaquim de Vasconcelos, e ignoram-se estudos importantes dedicados ao interlo­cutor de Miguel Ângelo, assim como se desconhecem várias edições das suas obras publicados no estrangeiro. Por esse motivo, acima ficaram registadas as edições conhecidas, em português e noutras línguas, dos escritos de Francisco de Holanda, e, a concluir, ajunta-se um elenco da bibliografia que expressamente trata dessa obra e do seu autor. 
    
BIBLIOGRAFIA


Aru, Carlo – I Dialoghi Romani di Francisco de Holanda in «L'Arte», annata XXXI, fasc. III, 1928, pp. 121-128.
    – I Dialoghi Romani di Francisco de Holanda ed il loro giusto valore per la conoscenza delle idee di Michelangelo sull'arte, in «Atti del I Congresso Nazionale di Studi Romani», vol. I, Roma, 1928, p. 799.
AURELII, Antonietta Maria Bessone – Della Sincerità di Francisco de Holanda, in «Il Va­sari», Arezzo, 1930, pp. 202-210.
    – I Dialogbi Michelangiolescbi di Francisco de Holanda. Traduzione dal portoghese con introduzione, cenni biografici, note e appendici. 1.ª ed., Roma, 1924; 2.ª, 1925; 3.ª, 1939; 4.ª, 1953.
AVERINI, Riccardo – Francisco d'Ollanda e o Juízo de Miguel Angelo sobre a Pintura Fla­menga, in «A Introdução da Arte da Renascença na Península Ibérica – Actas do Simpósio Internacional Comemorativo do IV Centenário da Morte de João de Ruão», Coimbra, 1981, pp. 79-86. 
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BATTELI, Guido – L'AIbo delle «Anticbità d'Italia» di Francisco de Hollanda, in «Biblio­filia», XLI, 1934, pp. 27-35.
    – Lo «Aquile» di Franc.isco de Holanda, in «Arte», 1940, pp. 128-133.
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    – Um Livro Desconhecido de Francisco de Holanda, in «Aleluia», n.º 34, 1953.
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    – Um grande artista à procura de um mecenas – as obras de Francisco de Holanda e a Espanha, in «Diário de Notícias», 19/1/1959. 
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CERCHIARI, Aldo L. – Parla Michelangelo (Da «De la Pintura Antiga» di F. de H.), Milano, 1946. 
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    – Michelangelo's Theory of Art, New York-Zurich, 1961.
    Idem, idem, London, 1963; trad. italiana: Michelangelo. I. Le idee sull'arte, Milano, 1964. 
CORREIA, Vergílio – Da Fábrica que falece à Cidade de Lisboa, edição preparada por Alberto Cortês (1918) que agora publica Vergílio Correia. Separata de «Archivo Español de Arte e Arqueologia», n.º 15, Madrid, 1929. 
CORTÊS, Alberto – Cf. CORREIA, Vergílio.
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DERS – Antiguidades de Italia por Francisco de Holanda, Lisboa, 1896.
DESWARTE, Sylvie – Contribution a la conaissance de Francisco de Holanda, in «Arquivos do Centro Cultural Português», VII, Paris, 1973, pp. 421-429.
    – Les enluminures de la Leitura Nova, 1504-1552, Paris, 1977.
    – Francisco de Hollanda e les Études Vitruviennes en Italie, in «A Introdução da Arte da Renascença na Península Ibérica – Actas do Simpósio Internacional Comemora­tivo do IV Centenário da Morte de João de Ruão», Coimbra, 1981, pp. 227-280.
    La «machine du monde»: Camoens et Francisco de Holanda. A propos de Lus. X, 76-91, in «Archivos do Centro Cultural Português», XVI, Paris, 1981, pp. 325-344.
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       O presente trabalho foi elaborado no âmbito dos estudos de crítica e história da arte desenvolvidos na Itália, em 1983, sob a orientação do Doutor Carlo Ludovico Ragghianti.  A redacção inicial – Introduzione allo Studio di Francisco de Holanda – foi feita directamente na língua italiana. A versão em língua portuguesa foi publicada  com o título “Francisco de Holanda - Introdução ao Estudo da sua Obra, em Revista de Guimarães 94 (1984) [44 pági­nas] e em separata.